Mais Habitação – Menos burocracia sem pôr em risco a segurança

Uma das medidas inseridas no pacote Mais Habitação é a dispensa de apreciação pelos serviços municipais dos projetos de arquitetura dos edifícios, que passarão a ser aprovados fazendo fé em "termo de responsabilidade" assinado pelo autor do projeto.

A simplificação dos processos de licenciamento não pode descurar os riscos associados; desburocratizar não pode ser sinónimo de desresponsabilizar. Licenciar a construção de edifícios com base, apenas, em termos de responsabilidade dos autores dos projetos, pode agilizar os procedimentos, mas não deve afastar o Estado das suas obrigações.

Há algumas semanas, a propósito do sismo devastador na Turquia e na Síria, o engenheiro João Appleton (investigador e dirigente no LNEC) afirmou, em comentário na CNN, que os engenheiros portugueses que assinam termos de responsabilidade dos projetos de estabilidade dos edifícios "mentem" e "não cumprem as regras" (referia-se às normas respeitantes à resistência sísmica). Esta afirmação, gravíssima, não suscitou as reações que seriam espetáveis... Por certo, muitos engenheiros são cumpridores, mas ninguém pode garantir a qualidade do que está a ser construído, porque nenhuma entidade pública avalia o cumprimento das normas nos projetos apresentados a licenciamento, nem a execução dos mesmos.

Em 2010, o governo, introduziu uma norma no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (n.º 10 do artigo 13º do Decreto-Lei nº 26/2010) que permitiria a verificação aleatória dos projetos aprovados com base em termos de responsabilidade. Infelizmente essa norma foi afastada, em apreciação parlamentar, por uma coligação negativa que incluiu todos os partidos da oposição (Lei 28/2010).

Neste momento, o que se propõe, no Mais Habitação, é eliminar a apreciação dos projetos de arquitetura, alargando a estes o regime de "termo de responsabilidade". No caso específico (projetos de arquitetura) o risco de incumprimento é facilmente escrutável porque os aspetos mais relevantes ficarão visíveis. Mas a oportunidade deve ser aproveitada para recuperar a norma que chegou a constar do Decreto-Lei nº 26/2010, para permitir às autarquias locais, com o apoio do LNEC, de universidades ou de outras entidades idóneas, verificar, por amostragem, o que realmente está a ser feito. Em especial nos projetos de estabilidade, que são os que, em caso de incumprimento das normas, podem representar o risco mais grave para os cidadãos.

Nas obras públicas de valor superior a oitocentos mil euros é obrigatória a revisão dos projetos (o dono da obra tem sempre que contratar a verificação dos projetos por técnico que não seja o autor dos mesmos). No caso de obras particulares, a lei (artigo 18º, n.º 3, da Lei nº 31/2009) limita-se a sugerir a revisão, em termos particularmente ambíguos. Tão ambíguos que não deixarão de parecer escandalosos se acontecer algum incidente grave atribuível a erros de projeto: o dono da obra não é obrigado a mandar rever o projeto; apenas "deve procurar [mandar rever], sempre que possível" e "sempre que a complexidade técnica do processo construtivo... o justifique". De todas as formas, com ou sem revisão, não está prevista a verificação dos projetos por parte de qualquer entidade oficial (mesmo perante a suspeita, grave, de que alguns autores dos projetos "mentem").

Se, um dia, nos confrontarmos com cenários como os que vimos na Turquia e na Síria, na sequência de um sismo grave, em Portugal, a responsabilização dos autores dos projetos constituirá fraco consolo para as vítimas. Garantir a segurança das pessoas é uma responsabilidade do Estado que deve ser assumida plenamente. Com razoabilidade, mas sem ambiguidades.


Investigador do IPRI-Nova (foi vice-presidente da CML e secretário de Estado da Proteção Civil)

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