Mais funcionários e mais burocracia eletrónica nos tribunais?

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A transição digital nos tribunais tem sido, em grande parte, uma migração da burocracia em papel para uma burocracia eletrónica, sem que se explorem plenamente as possibilidades que o digital oferece. A verdadeira digitalização vai além da simples substituição de arquivos físicos por imagens digitais, pois implica uma transformação mais profunda na forma como se processa, acede e partilha a informação.

Entretanto, os profissionais do setor continuam a lamentar-se de que “faltam mais oficiais de justiça” e agora o procurador-Geral da República veio denunciar a carência de mãos humanas para alimentar a transição digital e que também “são precisos mais digitalizadores”.

Enquanto o papel está limitado a um único local de cada vez, o digital permite que todos os intervenientes, juízes, magistrados, advogados e Ministério Público, acedam ao mesmo processo em tempo real, de qualquer lugar. Esta mudança torna obsoleto o conceito judicial da “posse do processo”, que era central na era do papel. Agora, o trabalho pode ser paralelo e não sequencial, o que poderia agilizar significativamente os procedimentos judiciais.

No entanto, essa potencialidade não está a ser aproveitada. Em vez de desmaterializar, automatizar e desintermediar, os tribunais continuam a replicar a lógica do papel no mundo digital. Processos que poderiam ser fluidos e automatizados mantêm-se presos a liturgias pseudodigitais, com batalhões de funcionários a digitalizar, imprimir, assinar e arquivar documentos manualmente, num ciclo interminável que consome tempo e recursos. A impressão de resmas de papel e a dependência excessiva de intervenções humanas mostram que a transição digital ainda não atingiu o seu potencial.

Uma verdadeira transformação digital permitiria especializar a representação da informação conforme as necessidades de cada interveniente. O que um advogado precisa ver num processo pode ser diferente do que o Ministério Público ou o juiz requerem.

A Justiça deveria adotar o princípio da “secretária sem papel”, em que as impressões seriam apenas simples “fotografias à la minute” para facilitar a leitura dos mais resistentes, mas em que ninguém deveria escrever ou fazer anotações, fora do ambiente digital de cada processo.

Ferramentas de Inteligência Artificial (IA), com recurso ao reconhecimento ótico de carateres (OCR) e o reconhecimento de voz, já estão disponíveis para automatizar tarefas repetitivas, como transcrições de audiências, extração de metadados e sugestão de arquivamento de documentos. Além disso, a IA poderia gerar resumos, identificar pontos essenciais e sugerir legislação e jurisprudência relevantes, poupando tempo e aumentando a eficiência.

Nas investigações criminais, ferramentas de e-discovery poderiam revolucionar a forma como se analisam milhares de documentos, rastreando textos, imagens, vídeos e áudios em minutos, encontrando padrões e conexões que seriam impossíveis de detetar manualmente. No entanto, a resistência cultural e o apego aos métodos tradicionais impedem que essas tecnologias sejam adotadas em larga escala. Muitos ainda preferem revirar processos físicos, como se a minúcia manual fosse sinónimo de rigor, ignorando que a tecnologia pode aumentar a precisão e a rapidez.

O problema, portanto, não está na tecnologia, mas na mentalidade e no peso das estruturas corporativas do setor. A digitalização exige uma mudança cultural profunda, que vai além da adoção de novas ferramentas.

Enquanto os tribunais continuarem a replicar no digital os mesmos processos morosos do mundo analógico, o progresso será ilusório. A verdadeira transformação digital na Justiça só ocorrerá quando se abandonar a lógica do papel e se abraçar plenamente as possibilidades do digital, tornando os processos mais ágeis, acessíveis e eficientes para todos os intervenientes.

Especialista em governação eletrónica

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