Madrinhas de guerra

Não precisamos recuar mais de 50 anos para encontrarmos nos nossos cartórios o registo de milhares de casamentos por procuração. Ela cá e ele lá, uns emigrados nas américas e outros a combater em África, num tempo em que atravessar o atlântico eram dias de juízo. A procuração era passada em nome de uma terceira pessoa, que assumia a responsabilidade e atestava o enlace à distância. Muitos desses casamentos resultaram do noivado entre soldados -- desde os combatentes na Flandres aos da guerra colonial -- e as suas "madrinhas de guerra", as jovens debutantes a quem se pedia que ajudassem a "levantar a moral das tropas", enviando cartas e mimo aos "afilhados".

É essa memória que me acode perante a notícia de que Portugal vai enviar para a frente de guerra na Ucrânia quatro dos 37 Leopard -- um mimo em forma de arma ofensiva que comprámos em segunda mão aos Países Baixos, por um total de 71 milhões de euros. E como nos casamentos, também a terminologia bélica adotou o termo de "guerras por procuração": aqueles conflitos armados nos quais as superpotências recorrem a terceiros países, como intermediários ou substitutos, carne e cidades para canhão, para não se enfrentarem diretamente entre si. Assim vai a guerra no Leste europeu, onde os ucranianos pagam com sangue o preço do embate geopolítico entre a Rússia, de um lado, e a Nato e a União Europeia, do outro, tocando a pauta americana. Os nossos quatro juntam-se à centena de tanques de guerra (serão mais 300 dentro de meses) fornecidos à Ucrânia por uma ampla coligação de países da Aliança Atlântica, encabeçada pela Alemanha e pelos Estados Unidos. Esta entrega de material ofensivo contém, é certo, uma mensagem de apoio a um país cujo combate coteja com as "necessidades de segurança europeia". Mas não há guerra sem escalada: o confronto consiste justamente em responder a cada ação com outra de igual ou maior intensidade, para derrotar ou pelo menos deter o adversário. No final, entre os vencedores estarão apenas os habituais falcões do armamento.

É incompreensível e escandaloso que, armados em madrinhas de guerra, o nosso envio de tanques para a frente ucraniana não tenha merecido, até ao momento, um debate no Parlamento, no Conselho de Estado, ou mesmo uma declaraçãozinha mais explicada

Sanguinárias e desalmadas, não há guerras justas, a não ser em legítima defesa. E neste caso o dilema é claro: se a Rússia cessar os combates já não há guerra, mas se os ucranianos deixarem de combater não haverá Ucrânia. A dor e a devastação que acompanhamos desde o sofá pedem um cessar-fogo e a paz, mas não a qualquer preço. A Ucrânia tem o direito de viver em liberdade, e os europeus o direito de a ajudar a defender-se. No final, haverá crimes para julgar, vítimas para indemnizar, um país para reconstruir. E esta é uma empreitada cujos custos calculados andarão acima dos 700 mil milhões de euros, ou seja, mais do que todo o plano de recuperação pós-pandemia para todos os países da União Europeia. Até lá, não há negociação que possa escapar a estas exigências. E há que lembrá-las, sobretudo a pensar no momento, oxalá não longínquo, de as armas se calarem, dando lugar à diplomacia e à política.

Até lá, é incompreensível e escandaloso que, armados em madrinhas de guerra, o nosso envio de tanques para a frente ucraniana não tenha merecido, até ao momento, um debate no Parlamento, no Conselho de Estado, ou mesmo uma declaraçãozinha mais explicada por qualquer dos nossos titulares de órgãos de soberania. É porque vai doer, compatriotas! E, sem transparência ou aviso prévio, pode chegar o momento em que a integridade da Ucrânia e a lei internacional valham menos que o bem-estar dos eleitores europeus, portugueses incluídos. Entende-se que tudo isto cheire mal, mas pode chegar a ser nauseabundo.

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