Lutar como uma democracia

A noção de que ser democrático é saber conviver com todas as ideias e que todos os eleitos merecem o mesmo respeito está fundamentalmente errada: há propostas e atitudes políticas repelentes e não é o facto de haver quem nelas vote que as torna aceitáveis. Ser democrático é combatê-las, não fazer de conta que são iguais às outras - comecemos por aqui.

Lutar como uma miúda". Esta frase, pensada para ser derrisória, machista - lê-se "os rapazes é que sabem lutar" -, e tantas vezes usada para apoucar rapazes e homens comparando-os com mulheres, transformou-se um slogan feminista: não é humilhante nem depreciativo fazer as coisas como uma miúda, ou uma mulher, porque as miúdas e as mulheres não são inferiores nem menos capazes. Não são fracas, são fortes. Não são indefesas, sabem defender-se.

Lembrei-me dela a propósito do velho debate - desde há uns anos também urgente em Portugal - sobre a forma como as democracias devem lidar com as forças não democráticas, e sobre a ideia de que a democracia é débil, dúctil, frágil, porque a sua natureza é, precisamente, a da recusa da violência.

O pacto democrático parte realmente dessa recusa: os combates políticos fazem-se pelo discurso e pelo debate de ideias, e a tomada do poder ocorre nas urnas, em paz, pela vontade do povo, através da soma das vontades de cada indivíduo, devendo o resultado ser respeitado por todos.

É simples, não é? Até que deixa de ser. Porque há ideias que têm como objetivo acabar com essa convivência pacífica. E é por esse motivo, e porque ninguém o pode ignorar - a história ensina e torna a ensinar -, que o pacto primordial da democracia (moderna) determina a exclusão de certas ideias, reputadas de criminosas e inaceitáveis.

Para começar, aquelas que põem em causa a recusa da violência como forma de combate político. E aquelas que negam dignidade igual e direitos iguais a todas as pessoas. É por esse motivo que a generalidade das constituições dos países democráticos - é o caso da nossa - proíbem partidos ou organizações políticas militarizadas e que defendam a tomada do poder pelas armas, assim como partidos racistas. É por esse motivo que há dezenas (mais de 50) de partidos ilegalizados nas democracias europeias desde 1947: porque se considerou, bem ou mal, que a respetiva existência ameaçava a convivência democrática.

Há quem ache que democracia a sério seria não haver proibição de qualquer tipo de ideologias - aqui entendidas, evidentemente, como discurso público; não se trata de impedir as pessoas de pensar ou de defender o que pensam num círculo mais restrito - e que esta forma de regime deve admitir tudo menos tirar olhos, só estabelecendo a fronteira nas ações violentas. Ou seja, não deveria ser proibido dizer publicamente coisas violentas, só concretizá-las.

Sabemos qual o problema desta perspetiva: as ações violentas não nascem por geração espontânea; fermentam a partir de impulsos ideológicos e discursivos, e - isto é muito importante - de violências simbólicas.

A violência simbólica, por exemplo, de colocar cordas com nós de enforcamento no portão de um órgão de soberania, ou de "anular" ou "rasurar", num cartaz, a imagem de determinadas personalidades políticas.

A violência nem sequer tão simbólica de apelar ao "cerco" da sede de um partido, de bater com os pés e as mãos num parlamento para perturbar um discurso, de gritar e insultar quando outros falam, de desrespeitar as regras parlamentares de funcionamento e de civilidade básicas, de dizer "boa noite" a uma deputada negra a meio do dia.

A violência nem sequer tão simbólica de atacar nas redes sociais, como "inimigos", associando-os a alegadas condutas criminosas ou imputando-lhes filiações partidárias, jornalistas cujo trabalho não agrada. A violência nem sequer tão simbólica de fazer uma publicação nas redes sociais "denunciando" uma festa de um partido como sendo "um perigo para as nossas crianças".

A violência nada simbólica de mandar uma deputada negra portuguesa "para a sua terra". A violência nada simbólica de criar uma persona política e fundar um partido a partir de uma única alavanca: a diabolização de uma comunidade étnico-cultural. A violência nada simbólica de, num debate televisivo, mostrar um grupo de pessoas negras, sem sequer as identificar, e chamar-lhes "bandidos" e "bandidagem".

Sim; episodicamente nas democracias os discursos políticos extremam-se, dizem-se e fazem-se coisas desagradáveis, tomam-se atitudes menos respeitosas, usam-se insultos e calúnias como se fossem argumentos. Já sucedeu decerto com quase todos os partidos. E pode até dizer-se que faz parte. O problema é quando deixa de ser um erro ou um exagero e se percebe ser uma estratégia; quando a utilização de provocações repelentes e grotescas, de incivilidade, de desrespeito, de apelos mais ou menos velados à violência, de ameaças mais ou menos explícitas, é o método, o programa, escolhido por um projeto político para se afirmar e, mais do que isso, como ideologia.

Como no caso de Trump, cujos discursos nunca foram mais que uma amálgama de ordinarice, gabarolices, insultos e apelos à violência, entremeados de mentiras e invenções, e que tem como único objetivo político, além de alimentar o seu narcisismo, transformar a democracia americana no seu império pessoal, a ideologia deste partido é a afirmação de uma vontade autocrática - a de subordinar tudo e todos, a de calar e amedrontar todos.

Podemos chamar-lhe bullyismo ou podemos chamar-lhe outra coisa - são a mesma. O ponto não é sequer o que lhe chamamos, é sabermos o que é, e sabendo o que é, como lidamos com isso.

Estamos para além daquele ponto em que se defendia que "se eles crescerem institucionalizam-se". Estamos para além daquele ponto em que se discutia se se devia falar deles ou não lhes dar atenção. Estamos para além daquele ponto em que dizíamos "nunca lutes com um porco".

Estamos noutro sítio, agora. Aquele em que os media, simultaneamente, não conseguem disfarçar o fascínio com o pior possível - e o pior possível é-lhes servido em doses cada vez mais opíparas, pois claro - nem tratar o pior possível como este deve ser tratado: como o pior possível.

Como se não houvesse, nas direções e redações da generalidade das TV, rádios, jornais, senão gente sem memória histórica, sem noção da missão do jornalismo na defesa dos direitos humanos. Como se aquilo que vemos e ouvimos vindo daquela força política fosse igual ao litro, e não nos ameaçasse naquilo que temos, ou devíamos ter, de mais precioso. Como se ser democrata não implicasse lutar pela democracia.

Podemos não saber exatamente como, nem o que melhor resulta, mas temos a obrigação de tentar. Começando por uma coisa simples: tratar como diferente o que não é igual.

Jornalista

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