Lisboa, vamos falar do aeroporto?
Por imposição do PS, que considera inaceitável qualquer aumento no número de voos em Lisboa, uma reunião pública e extraordinária da Câmara Municipal permitiu ouvir, esta terça-feira, associações de moradores, ambientalistas e outras entidades sobre um eventual aumento da capacidade do Aeroporto Humberto Delgado (AHD). As conclusões não foram surpreendentes, mas já lá vamos.
Uma das entidades que mais interessava ouvir era a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) que, embora ausente da reunião, enviou um lote de informações úteis para a compreensão do caso. Num desses documentos, a APA revelou que, no único parecer que lhe tinha sido solicitado referente às obras do aeroporto, dispensara a Avaliação de Impacto Ambiental no “pressuposto de que o projeto não esta(va) associado ao aumento da capacidade do AHD em termos do número de voos”. Ou seja, nunca foi perguntado à APA se, aumentando os voos em Lisboa (com tudo o que lhe está associado, como mais ruído, mais poluição atmosférica, mais saturação nos acessos rodoviários e maior risco de acidente aéreo na cidade), era necessária uma avaliação ambiental. Tudo o que chegou à Agência foi a obra prevista na Resolução da Conselho de Ministros n.º 201/2023, de 28 de dezembro, do Governo PS, que nunca contemplou a hipótese de aumento de tráfego aéreo.
Ora, sobre a necessidade de avaliação ambiental, a doutrina não diverge: ela impõe-se quando está em causa o aumento da capacidade de um aeroporto que, como é o caso do Humberto Delgado, está implantado na cidade, entre bairros residenciais onde moram pessoas que se deitam e acordam com a passagem de Boeing e Airbus, que trabalham com paredes que trepidam e janelas que nunca serão suficientemente insonorizadas.
Não nos passa pela cabeça que, prevendo agora o Governo português uma alteração tão significativa, como a que permite aumentar o número de voos de 38 para 45 por hora, e o número de passageiros de 33 para até 45 milhões, se iniba de cumprir a lei e não solicite a tão necessária, quanto obrigatória, AIA.
Nem conseguimos imaginar que o Governo decida sacrificar ainda mais a qualidade de vida dos lisboetas, quando a ciência já comprovou que a poluição e o ruído resultantes do tráfego aéreo têm impactos graves na saúde humana, e que quem vive e trabalha perto de um aeroporto tem pior qualidade do sono, interferência na capacidade de aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo, elevando os custos para o país com internamentos e tratamentos hospitalares.
Aumentar o número de voos na cidade de Lisboa seria, a todos os níveis, uma espécie de última fronteira, quando o que se vive é já uma situação insustentável.
Na reunião pública da Câmara, ouvimos uma moradora do Bairro do Rego dizer que as conversas em casa são interrompidas de cada vez que passa um avião. Um professor admitiu que interrompe as aulas de cada vez que passa uma aeronave. E elas passam a cada 2 ou 3 minutos.
Sobre tão graves consequências na vida das pessoas, o que tem a dizer o presidente da Câmara de Lisboa? Que a sua ideia é reduzir ou acabar com os voos, mas que se tal não for possível, Lisboa tem de ter compensações.
Fica a nossa pergunta: que compensações pode ter quem vive sob uma autêntica autoestrada aérea? Que compensações se dá a quem sente a saúde ameaçada, a quem não consegue dormir, e a quem está permanentemente sujeito ao ruído e à poluição? E que contrapartidas esperamos que ofereça quem impunemente não executou as medidas previstas no Plano de Ação do Ruído 2018-2023, e quem “viola sistematicamente” os limites aos voos noturnos (como denunciou a Associação Zero)?
Além disso, numa altura em que já se decidiu a localização para o Novo Aeroporto Internacional, que sinal dá o Governo ao permitir a ampliação da estrutura que há décadas se tenta desmantelar e que já tem morte anunciada? Ao anunciar mais aviões em Lisboa, não está o Governo a dar sinais contraditórios ao concessionário privado que tem de acelerar a concretização da nova infraestrutura aeroportuária?
É um facto que o AHD tem vindo a registar demasiados atrasos e pior qualidade no serviço. Foi isso mesmo que levou o anterior Governo a alertar para que “o investimento que a concessionária tem vindo a fazer nesta infraestrutura aeroportuária não se revela suficiente para garantir a resposta expectável e desejável”, e que o fez prever medidas para “maior eficiência na operação aeroportuária, sem aumentar o número de voos”. Mas permitir um novo fôlego ao AHD não é o mesmo que permitir o aumento no seu movimento. E é isto que os lisboetas, que já vivem mais perto de um aeroporto do que qualquer outro europeu, não entendem, nem aceitam.
Precisamente pelas consequências serem tão graves quanto evitáveis, a Câmara Municipal de Lisboa tem de ser a primeira linha de defesa da cidade e não pode compactuar com uma alteração que vai prejudicar a sua população, em alguns casos de forma irreversível. A posição do Partido Socialista não mudou desde o início do processo: Lisboa não aguenta mais voos, a saúde dos lisboetas não está à venda e não há compensação possível para o que está em causa.
Hoje, não vale a pena citar Os Maias, porque a complexidade dos problemas atuais não encontram paralelo na sociedade do século XIX. A não ser que, como Ega, escolhamos beber absinto para escapar à realidade. Mas deixemos essa “viagem” para quem continua a considerar Carlos Moedas como o “visionário que trouxe a inovação à capital”.