Lisboa é muito especial para este americano. Muito especial, mesmo! 

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"O professor Carl Steinitz vai estar em Lisboa. Não o quer entrevistar”, perguntou-me via e-mail Cristina Castel-Branco há uns meses. Confesso que não reconheci o nome, mas tendo em conta as amizades globais da arquiteta paisagista - que conheci quando um dia entrevistei Erik Orsenna no seu atelier em Lisboa -, não duvidei de que deveria ser um académico de grande prestígio. E claro que sim. Steinitz é aquilo que se chama uma sumidade. É professor emérito de Harvard, um arquiteto que dedicou, e passo a citar a Universidade de Lisboa, “grande parte da sua carreira académica e profissional ao melhoramento de métodos para analisar grandes áreas terrestres e tomar decisões sobre conservação e desenvolvimento”.

Steinitz tem agora dado muita atenção ao impacto das alterações climáticas na paisagem, natural e com intervenção humana, e envolveu Portugal nos seus projetos. Daí ser totalmente natural o Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Lisboa, com a cerimónia a acontecer na Sala de Atos do Instituto Superior de Agronomia, já há alguns meses. “Uma honra. E uma honra muito especial por ser em Lisboa, por ser em Portugal”, disse-me o professor.

O doutoramento Honoris Causa do professor Carl Steinitz, no Instituto Superior de Agronomia.

A ideia era uma entrevista sobre os desafios ambientais para Lisboa, uma cidade, que Steinitz alertou, poderá “no espaço de poucas décadas atingir os 50 graus no verão”. Mas como o tema da habitação estava na ordem do dia, centrei mais a conversa na questão das respostas da capital portuguesa em termos de construção que responda ao aumento da população urbana. Só que a gravação da entrevista correu mal e desde novembro do ano passado que dei quase por perdido o conteúdo Steinitz.

Quando a professora Castel-Branco me enviou fotografias da cerimónia em Agronomia, voltei a tentar ouvir a gravação, mas com dificuldades. Depois, a arquiteta portuguesa disse-me que estava em Nagasaki com Steinitz e a entrevista tinha vindo à conversa. Mas o som estava mesmo difícil. Até que consegui agora recuperar parte da minha entrevista com o professor americano, atualmente professor honorário na Universidade de Londres.

Publico aqui apenas o trecho sobre a construção em Lisboa, mas prometo mais adiante um segundo trecho, mais pessoal, e também a ver com a nossa capital: “Lisboa tem uma paisagem muito especial, porque é banhada por um rio enorme, tem muitas colinas, uma história antiga. Então, em termos de construção, há três opções clássicas. Ou uma escolha que inclua partes das três opções. Uma opção é eliminar a agricultura. Outra é construir onde estão hoje florestas. E uma terceira opção é triplicar a altura de cada edifício. Essa escolha compete à cidade, a quem decide em nome dela. Mas estou a imaginar que Lisboa tem ainda alguma agricultura, mas não muita. Quanto a florestas, provavelmente é só Monsanto. E fazer subir os edifícios, não sei se será apenas um problema cultural ou se é mesmo possível fazer isso em Lisboa com tantas colinas. Portanto, se a população aumentar em Lisboa, será uma situação muito difícil. Mas essas são as escolhas possíveis. Como cientista, posso dizer que existem dimensões de avaliação dessas escolhas. Uma delas é o custo. Provavelmente a opção mais barata era construir na lavoura, certo? Por estar nos vales, são zonas relativamente planas. Já as florestas ficam principalmente nas colinas, certo? O que torna a construção mais cara, pois as fundações são muito mais complicadas. E o mais caro de tudo é demolir a casa de alguém para construir um prédio de apartamentos. Para construir em altitude. Mas cada opção tem problemas. Se eliminarmos a agricultura, não teremos alimentos locais. Se construirmos nas florestas, não teremos ar puro. E se construirmos em altitude, não se mantém o património da cidade. Pareceria Hong Kong. Ou qualquer outra cidade do mundo. Já não seria Lisboa. Portanto, há muito para debater.”

Quando Steinitz diz que “já não seria Lisboa”, senti que não era só o académico a falar, não era só o visitante habitual da cidade. A ligação a Portugal é muito mais profunda e muito mais pessoal. Volto, pois, a transcrever parte da conversa: “Estar em Lisboa tem sempre um significado especial, desta vez também pelo Honoris Causa. Mas é muito mais do que um significado especial, devo em parte a minha vida a Lisboa. Eu era um refugiado da Alemanha nazi e estive em Lisboa durante seis semanas em 1941, e os meus pais e eu apanhámos aqui um navio para a América, e foi esse o último navio de refugiados admitido pelos Estados Unidos por causa da entrada na Segunda Guerra Mundial. Quando saímos da Alemanha viajámos num vagão de gado fechado através da França, até à Espanha. Passámos depois cerca de cinco semanas em Sevilha e, a seguir, algumas semanas em Lisboa à espera deste barco, e recebemos a hospitalidade das pessoas com quem ficámos em Lisboa, e foi muito importante o momento, porque o barco seguinte que foi da Europa para a América acabou por ser enviado de volta, e todos, ou quase todos, morreram depois. Sem o barco que nos levou de Lisboa, eu poderia ter  morrido com 4 anos de idade. Nunca esqueci. Já contei esta história muitas vezes. Os meus pais falavam muito nos Estados Unidos sobre isto quando eram vivos e eu ouvia. É algo que nunca, nunca esqueci. Obrigado.”

Obrigado, Cristina Castel-Branco, por me ter dado a oportunidade de conversar com Carl Steinitz.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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