Linha vermelha na Justiça: ameaça ao Estado de Direito

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Foi-nos dado a conhecer esta semana que os “juízes querem mão pesada nos expedientes dilatórios”. Antes de cairmos na armadilha de pensar que se pretende punir arguidos célebres e os seus advogados caros, entendamos o verdadeiro significado do que se pretende.

A pretexto de se agilizar a Justiça, rapidamente se atravessará perigosamente a fronteira daquilo que um Estado de Direito democrático pode tolerar. Caso a medida vá por diante, tornar-se-á de aplicação corriqueira e quotidiana a todos aqueles que simplesmente pretendem exercer de forma legítima os seus direitos e legítimos interesses em Tribunal, maxime, o direito de defesa em processo penal. Rapidamente se passará a punir cidadãos, empresas e advogados por recorrerem a mecanismos processuais legítimos, desvirtuando pilares nucleares do Estado de Direito democrático: a liberdade de defesa, o acesso ao direito, a garantia de uma tutela jurisdicional efetiva e a independência dos advogados.

Num Estado de Direito moderno, a resolução de litígios passa necessariamente pelo crivo dos Tribunais. É, pois, através do exercício independente do mandato forense dos advogados que as pretensões e legítimos interesses e direitos das partes são feitos valor. Sem esta liberdade e independência de atuação, devidamente enquadrada no Estatuto da Ordem dos Advogados e reconhecida em diversos diplomas legais, a realização da justiça material, mormente, o direito de defesa, e o próprio conceito de Justiça, ficam irremediavelmente comprometidos.

É certo que a morosidade judicial continua a constituir um problema, por vezes mais empolado do que real. Mas se existem pendências acumuladas, falta de meios materiais e humanos e sucessivas reformas falhadas que tardam em oferecer resultados concretos, o caminho não pode, nem deve ser o de restringir direitos fundamentais dos cidadãos, sejam os da tutela jurisdicional efetiva, seja o próprio direito de defesa dos arguidos.

Aceitar como normal num Estado de Direito anquilosar e constranger o exercício do mandato forense pelos advogados com sanções patrimoniais e/ou queixas disciplinares por, alegadamente, usarem expedientes “dilatórios” é inexoravelmente grave e deve obrigar-nos, enquanto comunidade, a refletir de forma muito séria como, vividos 50 anos em democracia, estamos dispostos a aceitar tão rude golpe na democracia.

A medida, viesse ela do político, poderíamos eventualmente procurar enquadrá-la no populismo que vai grassando, mas vindo a mesma de magistrados judiciais, a situação assume contornos de extrema gravidade, revelando uma democracia em avançado estado de falência de valores fundamentais.

Os juízes devem ser, num Estado de Direito democrático, a última garantia de defesa dos cidadãos e das empresas e lídimos defensores da liberdade e independência dos mandatários. Em momento ou lugar algum, nos dias de hoje, nos podemos conformar que se possa pensar em acelerar a realização de Justiça, transigindo e sacrificando garantias constitucionais de defesa em que se funda a nossa democracia.

Advogado e Sócio fundador da ATMJ - Sociedade de Advogados

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