Licenciamento de construção e licenciosidades públicas
O governo apresentou uma proposta no sentido de dispensar de licenciamento prévio por parte das câmaras municipais a construção de habitação, não abrangendo aparentemente aqui planos de urbanização ou loteamentos. Bastar-se-ia a declaração do arquiteto do imóvel em como o seu projeto cumpria a lei, sendo este depois responsabilizado, juntamente com o construtor, por eventuais incumprimentos em que o projeto incorresse. Ou seja, um alargamento do atual regime da comunicação prévia às autarquias, em alternativa ao mais demorado e sinuoso processo de licenciamento.
Contra esta perspetiva insurgem-se autarcas, certamente receosos de uma eventual diminuição de receita e da diminuição da capacidade de decisão e de autonomia que está subjacente ao apresentado. Insurgem-se também arquitetos, que não veem com bons olhos recair sobre si uma responsabilidade aparentemente acrescida.
Mas o que sabemos do atual estado de coisas em matéria de licenciamento de construção, que agora alguns pretendem proteger? Sabemos que elas não impediram verdadeiros atentados arquitetónicos e urbanísticos. Sabemos que há diversas situações em que construir ou não construir pode estar na mão (e por vezes uma mão acolitada por um envelope) de um ou outro "técnico", como diversas sentenças transitadas em julgado demonstram. Sabemos que os tempos de decisão pública são em regra demasiado longos, por vezes de forma inexplicável. Sabemos ainda que há autarquias que nem sequer técnicos para a apreciação de um projeto têm nos seus quadros.
Sabemos que há demasiada construção de fraca qualidade, feia, mal isolada, com problemas de base, mas devidamente licenciada pelas entidades públicas em causa ou, pelo menos, permitida. E sabemos que o mundo das nossas regras da urbanização e edificação é um mundo demasiado arbitrário, talvez propositadamente confuso e incerto, com várias áreas de dúvida e de risco impossível de afastar, mesmo se estranhamente regulado à profusão.
O que dizer quanto a isto?
Desde logo dizer que a proposta não é uma absoluta novidade: a simples comunicação prévia, com entrega de projeto de arquitetura, já existe, na lei e na prática. Mas dizer também que outros países oferecem o que podem ser bons exemplos, de redução de exigências administrativas e, ao mesmo tempo, de segurança e seriedade adicionais no tema.
De modo a facilitar a construção de habitação, própria ou para venda, havendo um interessado em construir numa dada zona, deveria ser possível, como sucede em alguns países, verificar-se, de forma rápida e gratuita, numa conservatória do registo predial ou online, que parcelas de terreno o permitem, com que condicionantes e se encontram à venda (nada impediria os vendedores de o assinalarem previamente nem as autarquias). Assim sucede na Bélgica.
Nalguns países, o custo dos serviços de arquitetura encontra-se legalmente tabelado em função do custo global da obra em causa (também na Bélgica, por exemplo, entre 7% e 12%), sem prejuízo de outro acordo celebrado. Essa poderia ser uma forma de qualificar adicionalmente a função, tendo em conta também novas e mais decisivas responsabilidades, e minorando riscos de construção de fraca qualidade arquitetónica.
Em França, obter um documento da câmara municipal com todas as condicionantes, obrigações e requisitos para construção num dado terreno é gratuito e vincula a autarquia - é o nosso Pedido de Informação Prévia, mas efetivamente completo e gratuito, que por lá se chama certificado de urbanização. O pedido de licenciamento camarário, posterior, que é feito pelo construtor contratado, não demora mais de 3 meses a ser respondido. E o contrato de construção de uma habitação, assinado entre dono de obra e construtor, existe, tem valor e transfere para o empreiteiro as responsabilidades pelo cumprimento das regras urbanísticas em causa.
Já agora, também em França, no caso dos rendimentos do agregado familiar não excederem um dado montante, há direito a crédito para aquisição ou construção da primeira habitação própria permanente a custo 0%, independentemente do banco a que se recorra.
Estes exemplos ilustram bem três aspetos em que somos muito frágeis: em estabelecer regras claras e acessíveis; em valorizar a formação de contratos, seguros, certos, que estabeleçam e exijam responsabilidades; e em pagar devidamente por serviços que deveríamos valorizar, como o caso da arquitetura. E, já agora, o preço médio da construção nova por metro quadrado, nestes países, é, em 2023, de 1500 euros... Abaixo, portanto, aqui do valor deste país rico, legalista e solarengo, mas onde se morre de frio em casa, quando a temos, que se chama Portugal.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa