Ler, ler, ler… Está tudo ligado até a defesa da democracia

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Começou no dia 4 de junho e termina no dia 22 de junho a Feira do Livro de Lisboa. Todos os anos é um evento relevante: vemos escritores, presidentes, ministros e outras figuras da cultura a passarem pela feira e o seu discurso é invariavelmente de valorização do livro e apelo à leitura, apelos que ficam registado em diversas reportagens televisivas. Em sentido oposto vão alguns números que nos deveriam preocupar como, por exemplo o facto de mais de metade da população portuguesa não ter lido sequer um livro durante um ano (dados de 2022) ou que 23% dos jovens do 9.º terem dificuldades sérias de compreensão leitora (dados do PISA 2022).

Dizem os indicadores de venda que os jovens estão a ler mais, talvez graças ao TIK TOK e aos influenciadores neste tipo de rede. No entanto, a iniciativa do cheque livro promovida ainda pelo Governo PS parece que não ter tido o sucesso desejado já que apenas 42.000 jovens que nasceram em 2005 e 2006 fizeram o pedido do cheque de 20 euros para comprar um livro dos 220.000 que poderiam fazer esse pedido. Daqueles que fizeram o pedido, cerca de 11 mil nada adquiriram até meados de abril deste ano. Perante estes dados levanta-se a questão se mais vendas significará de facto mais jovens envolvidos em atos de leitura ou apenas mais compras por parte dos que já liam.

São muitas e diversas as iniciativas para estimular crianças e jovens para a leitura. As bibliotecas e festivais literários têm quase sempre iniciativas para as crianças e jovens com momentos de leitura e contacto com escritores, o Plano Nacional de Leitura tem, ou teve vários, projetos e iniciativas a decorrer. Sem desvalorizar a importâncias dessas iniciativas, o seu impacto é relativo por serem apenas projetos ou iniciativas pontuais, não se criando muitas vezes, a partir delas, rotinas de leitura.

Enquanto cientista da leitura e não enquanto escritora deixem-me fazer algumas sugestões e proporcionar algumas indicações que me parecem relevantes:

A educação pré-escolar e o primeiro ciclo são fundamentais para a leitura. A percentagem dos jovens que o PISA identifica com dificuldades de compreensão leitora (cerca de 23% dos jovens do 9.º ano) está correlacionado com os indicadores de leitura na idade adulta segundo dados do PIAAC. Por outro lado, a percentagem do PISA corresponde basicamente à mesma percentagem de crianças do 5.º ano que não alcançaram um nível intermédio de leitura (25% dados do PIRLS). Estes números têm duas leituras relevantes. Primeiro: não se pode criar hábitos de leitura em jovens e adultos cuja fluência leitora e compreensão leitora são altamente deficitárias e estes representam quase um quarto dos nossos jovens. Segundo: é no primeiro ciclo que têm de ser resolvidas as questões da aprendizagem da leitura, porque comparando os dados do PIRLS e do PISA quase não se verifica evolução entre o 5.º e o 9.º ano de escolaridade. Portanto, os belíssimos discursos e as iniciativas caem em saco-roto para um número significativo de crianças e jovens que ainda silabam a ler ou que no máximo conseguem extrair factos literais muito simples do que leem. Estas crianças e jovens estão de imediato excluídas dos clássicos da literatura porque mais que se perore sobre as belezas da leitura.

Em relação aos que dominam a leitura há a questão da motivação. São muitos os estudos que demonstram que o facto de se ler para as crianças e jovens e partilhar o entusiasmo pela leitura de livros (estou a falar de livros em particular e não a leitura em geral) faz desenvolver nas crianças sentimentos positivos sobre o ato de ler. O entusiasmo como todas as emoções têm um efeito de contágio. Se pais e professores gostarem de ler, se lerem para crianças e jovens de forma rotineira e, neste contexto, se analisarem as histórias e depois mais tarde os próprios clássicos provavelmente o interesse pela leitura aumenta. Não se pode é continuar a ensinar literatura começando pelo registo analítico antes de se gerar entusiasmo pelo enredo.

Para comunicarmos uns com os outros não precisamos de mais de 3000 palavras, é através da leitura que os seres humanos adquirem vocabulário mais sofisticado e preciso. A amplitude e precisão do léxico pessoal está correlacionado com o rigor do raciocínio e com a forma como processamos a informação. Se não dispusermos de instrumentos linguísticos e de pensamento a informação é deglutida sem qualquer análise e as portas da manipulação ficam abertas de par em par.

Escritora e Professora no Ispa – Instituto Universitário

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