Leia e apague
Portugal acaba de institucionalizar e legalizar a censura, atribuindo poderes a uma entidade agora autorizada a perseguir quem "produza, reproduza ou difunda" narrativas consideradas pelo Estado como "desinformação". O Estado também irá "apoiar a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social" e "incentivar a atribuição de selos de qualidade" à imprensa considerada "fidedigna". Enfim, os governos decidirão quem é detentor da verdade e quem a certifica.
Nem de propósito, esta golpada à democracia foi pouco debatida, quase nada noticiada (mesmo mexendo no nervo dos media). Trata-se da Carta de Direitos Humanos na Era Digital, que apenas deveria fixar o livre e igualitário acesso, utilização e criação digital. Tudo o resto é pretexto (com a velha desculpa da segurança e da protecção das populações) para monitorizar comunicação social e redes sociais. Diga-se que esse impulso até já tinha sido aventado por este governo, sem, contudo, ganhar gravidade e efectividade.
Sempre existiram fake news, boatos, rumores, maquinações, conspirações, campanhas orquestradas. Uma democracia percebe que tal faz parte da sociedade, aprende a viver com isso, ajuda e educa os seus cidadãos para saber diferenciar factos de opiniões, a ser exigente, a praticar a dúvida sistemática e o pensamento crítico. Claro que combater as notícias falsas é importante e claro que há novos desafios, mas nada justifica escancarar o portal do lápis azul e do silenciamento. Com esta Carta, como se define onde começa e acaba a liberdade de expressão e opinião? E quem supervisiona tais limites? Com que isenção? E quando a mentira emana do próprio Estado e seus reguladores? Sublinhe-se que são as ditaduras que se mostram avessas a tudo o que belisque os interesses instalados, que incomode o sistema, chamando-lhe manipulação, calando e proibindo.
Esta Carta, sob pretexto de transpor nacionalmente o Plano Europeu de Combate à Desinformação, omite a referência a barreiras cruciais como a exclusão das "notícias e comentários claramente identificados como partidários". Da mesma forma, em vez de usar o conceito de "informação" como proposto no documento original, substituiu-o pelo de "narrativa", "narrativa comprovadamente falsa e enganadora", sendo que este conceito é muito mais vasto, remetendo para um certo enquadramento dos factos. Os dados podem ser verdadeiros, mas a forma como são encadeados, destacados ou omitidos origina uma perspectiva, uma narrativa. Só falta decretar: "Proibido pensar." Ou seja, a concretização portuguesa do que foi projectado no plano europeu enquanto defesa face a agentes ameaçadores externos desagua numa abusiva permissão para censurar actividades noticiosas internas.
Na Assembleia da República não houve vivalma que se opusesse a mais este saque dos nossos direitos e garantias. A Constituição consagra a liberdade de expressão e de imprensa, não permitindo cortes por "qualquer tipo ou forma de censura", garantindo ainda "a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político", mas os deputados portugueses não estão nem aí. Lei Fundamental, democracia, república, parece que não lhes interessa. Nada mais representam do que o seu próprio umbigo. Atenção! Até quando é que algo como isto se poderá dizer?
Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia.