Lei de Política Criminal: Uma dúvida metódica e parar para pensar
Portugal aprovou há 16 anos a Lei-Quadro da Política Criminal (Lei n.º 17/2006, de 23 de maio), com o bondoso propósito de o poder legislativo diminuir a discricionariedade da ação penal nos seus diversos níveis, tanto na investigação como no andamento dos processos criminais.
Foi um bondoso propósito porque, não sendo os recursos ilimitados, importa dar prioridade aos crimes que, em cada momento histórico, devam merecer uma avaliação legislativa e social que justifique a sua prioridade, na prevenção e na investigação, não se podendo "tratar de tudo ao mesmo tempo".
Isto com a vantagem de tal orientação ser feita abstratamente e, sobretudo, pelo máximo órgão competente e legítimo, a seguir à Constituição, na definição dos crimes e das penas, que é a Assembleia da República, pelo menos em Estado de Direito Democrático.
Porém, tenho as maiores dúvidas acerca da utilidade deste sistema, que a cada biénio é renovado por uma lei, sendo a atual a Lei n.º 55/2020, de 27 de agosto, que está em discussão.
Decerto que não está em causa a sua total "ineficácia", mas seria importante saber que resultados práticos, depois destes anos todos, o sistema gerou, aliás copiado de países estrangeiros.
Gostaria mesmo que fosse feita uma auditoria ao seu funcionamento, até porque são muitas as queixas relatadas de prolongamento excessivo de processos de investigação criminal, nos quais tem sido apontado o dedo à falta de meios humanos e tecnológicos, parecendo que, então, aquela lei de nada serve.
Tudo se agravando com a "suspeita" de que esse reforço não convém à classe política por esta ser especialmente visada na criminalidade económico-financeira, estes fenómenos criminais com a sua proverbial maior complexidade de investigação.
Ainda assim, parece útil que o poder legislativo, como é o que vai acontecer, deva em cada momento reequacionar essas prioridades, não esquecendo que a criminalidade nos últimos tempos tem sofrido mutações, tanto na sua gravidade -- maior violência, até praticada por mais jovens, no contexto do tempo pós-pandémico -- como no relevo social que hoje é sentido em certos crimes, como os relacionados com a discriminação e o ódio, por razões ilegítimas de discriminação.
Mas mantenho as maiores reservas sobre o "sistema", que pode mesmo transmitir duas ideias erradas: (i) a de que, havendo prioridade, os crimes escolhidos serão investigados rapidamente, o que está longe de ser verdade, por maior que seja a boa vontade; (ii) a ideia de que os crimes que não são considerados prioritários, afinal, não são crimes de 1.ª classe, assim o Estado dando a entender que quanto aos mesmos afrouxa a censura social-penal que lhes deve corresponder, já que estes nunca deixam de ser crimes como quaisquer outros.
Presidente do OSCOT e constitucionalista