Lavacolhos, aldeia com identidade

A Beira interior poderá ter cidades ainda pouco competitivas em múltiplas ofertas que possam aliciar novas famílias, mas por outro lado, tem um excecional território com uma paisagem natural diversificada, onde predominam na sua poética singular espaços perfeitamente desenhados, com montanhas, pinhais, planícies, zonas ribeirinhas.

Sabemos que urgem políticas que combatam a desertificação. Manter uma legislação para a proteção dos nossos solos florestais e agrícolas através da REN reserva ecológica nacional e RAN reserva agrícola nacional, poderão ser ferramentas que tenham na sua essência o desejado equilíbrio ambiental, proteger os nossos solos da erosão para manter vivo o manto vegetal é sinónimo de vida, estamos a precaver um futuro melhor para todos.

Mas será que todo o território regulamentado por estas duas entidades, está exposto a este desgaste provocado por causas naturais ou pela nefasta negligência humana?

Penso que não, cada espaço tem a sua particularidade de ofertas, generalizar o uso dos solos como um todo, acabamos por fomentar a política do abandono.

Se usássemos esta filosofia regulamentar dos solos no sistema rodoviário, seria quase como termos estradas nacionais onde só poderiam circular motociclos e autoestradas para viaturas ligeiras, acabaríamos de certeza com os acidentes entre viaturas ligeiras e motociclos.

Mas seria esta uma medida funcional?

Nos dias de hoje já se consegue construir casas autossuficientes, com energias limpas. Possibilitar a construção de habitação familiar de uma forma regrada, em espaço natural fora dos aglomerados urbanos, com uma ligação ao mundo através de uma internet eficiente, talvez seja uma das soluções para cativar pessoas a fixarem-se no nosso território.

Já o nosso multifacetado Pessoa dizia " Deus quer o homem sonha e obra nasce", eu digo que sem o Homem, não temos sonhos e a obra dificilmente nascerá.

O mundo rural precisa urgentemente de gente.

Pela construção de um benéfico e novo paradigma, sinto-me na obrigação de fazer um agradecimento muito especial ao Jornal do Fundão, pela sua resiliência, em manter na sua agenda e estratégia, a constante preocupação do desenvolvimento do território das Beiras, é um jornal que nunca deixou de se preocupar com o espaço geográfico e a sua gente.

O seu projeto Interioridades é uma excelente ferramenta para o desenvolvimento, possibilita, o diálogo, a reflexão, o reconhecimento das realidades existentes no nosso interior. Escolherem Lavacolhos como um ponto de partida para o tema, Aldeias identitárias, deixa-nos bastante orgulhosos pelo reconhecimento da nossa aldeia, em ter um vínculo bastante forte a este tema, e acredito que na essência identitária, não se confina apenas as festividades e romarias onde gritam Ó Alto os nossos Bombos.

Por isso questiono muitas vezes nos meus devaneios, o que é a identidade de uma aldeia?

Será que essa identidade poderá ser um fator aglutinador de progresso e riqueza para as aldeias do interior?

Sabemos que nos nossos dias já foram criadas associações e agências, onde o seu objeto é a promoção e o desenvolvimento das aldeias, agrupadas através de um denominador comum.

As Aldeias Históricas de Portugal emparelharam 12 aldeias através da poética dos seus castelos.

A ADXTUR - Agência para o desenvolvimento Turístico das Aldeias de Xisto, agrupou 27 aldeias, que tivessem uma homogenia malha urbana onde predomina a pedra de xisto.

A ADIRAM -Associação de desenvolvimento integrado da rede das aldeias de montanha, assentou a sua estratégia através da localização geográfica, e agrupou 41 aldeias inseridas na Serra da Estrela e Gardunha.

É de salutar todas estas entidades que promovem benefícios e riqueza para o território, através da singularidade cultural, social, monumental, paisagística, ambiental.

Mas reconheço que é através do turismo que estas estruturas de desenvolvimento, felizmente tem conseguido alavancar a economia local e gerar alguma riqueza para as suas aldeias.

Mas não podemos esquecer que a região centro tem 972 freguesias, se descontarmos os seus 100 municípios e as 80 aldeias que já fazem parte das estruturas de desenvolvimento aqui faladas, estamos perante 792 freguesias, que devem de ter pelo menos uma aldeia, o que podemos concluir que cerca de 90% das aldeias continuam adormecidas num Portugal esquecido.

Mais uma vez questiono.

A identidade da aldeia será força motriz que potência o desenvolvimento?

Eu não tenho qualquer dúvida, que se a identidade vier da singularidade da sua gente é um bem catalisador que promove o progresso comum.

Infelizmente muitas vezes desperdiçamos o nosso precioso tempo a medir forças com o grau de importância das nossas tradições, ou das nossas intrínsecas qualidades, a tentar responder à supérflua pergunta de quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha.

Alpedrinha, Alcongosta, Alcaide, Castelejo, Silvares, Fatela, Telhado, Barroca, Vale Verde, Três Povos, Souto da Casa, Donas, Lavacolhos são aldeias que tem todas um dominador comum, Bombos. O fundão além já ter registado no inventário nacional do património cultural imaterial a construção das suas caixas e bombos, é o concelho a nível nacional com mais grupos de Bombos. No dia em que estas aldeias decidirem deixar de ser um mapa de retalhos, e unirem-se com os seus bombos, poderão criar uma marca tão forte como a cereja do Fundão.

E não pensem que esta demanda é pura fantasia minha, eu acredito na garra do Beirão.

Ora vejam.

Quando cheguei ao mundo rural em 2019, fui presenteado por um incêndio à porta de minha casa que fica a 1,5 Km de Lavacolhos, e o que mais me impressionou nesta receção de boas vindas, não foram as lavaredas dantescas, mas a massa humana que se deslocou da aldeia para me socorrer.

Estando eu formatado a uma urbanidade cinzenta e individualista não compreendi o que fazia mover esta gente, mas o milagre deu-se e não foi pelo término da anunciada desgraça, mas a genuína entrega popular que gerou automaticamente em mim, um laço afetivo à terra e principalmente aos ensinamentos da sua gente.

Hoje sinto-me pertença, e bebo com extrema satisfação a nossa cultura, vejo os Bombos de Lavacolhos nas arruadas, eles enchem-nos o coração de alegria, e quando passam, toda a aldeia cheia de orgulho diz de boca cheia e com razão, SÃO OS NOSSOS BOMBOS. Os Bombos de Lavacolhos não representam um corpo de individualidades, os seus tocadores são pessoas da comunidade. Quando atuam fora da aldeia, quer à saída como à chegada, mesmo que seja de madrugada tocam a sua moda do Bombo para avisar os seus que todos chegaram bem. Eu como sou um animal romântico interpreto de outra forma, quando chegam o seu toque informa-nos que a nossa aldeia está novamente fortificada.

Os Bombos de Lavacolhos, não só pela sua arte performativa, mas também pela força motivacional do seu coletivo, foram e são, fonte de estudo para etnomusicólogos e outros académicos, forte inspiração para músicos, pintores e poetas.

Mas não é só os Bombos que fazem mover a nossa gente, a religiosidade popular também é agregadora de pertença da nossa comunidade, e todos os anos, na sexta feria santa os penitentes saem à rua.

No dia 15 de Abril de 2022 o destino abriu-me uma porta para participar na Procissão dos Penitentes, e assim conhecer melhor a nossa gente, gostaria de partilhar convosco esta experiência.

Apesar da junta de freguesia de Lavacolhos não fazer parte da organização deste evento, acaba por participar de uma forma superficial. Cerca de um mês antes da data da procissão, sou questionado pelo Turismo-Fundão se a mesma se irá realizar, necessitando desta informação para a elaboração e publicação do programa festivo da Quadragésima- Ciclo de Tradições da Quaresma.

Como era um recém-eleito presidente de junta, com apenas três anos de vivência no mundo rural, para evitar qualquer constrangimento, consultei o executivo.

Resposta unânime e quase jocosa porque o único ignorante e saloio que estava naquela sala era eu: "Claro que vai haver, temos que arranjar alguém para desligar a iluminação pública"

Com uma resposta tão firme e clara, informei as entidades que na aldeia de Lavacolhos, contra todas as epidemias, a procissão ir-se-ia realizar.

- Tarde de Quinta-feira Santa - fui informado de que existem objetos no edifício da junta de freguesia que são necessários para a realização da procissão.

Tremor nas canelas, questiono, quais objetos?

Como tenho sempre por perto um anjo da guarda, fui salvo pelo meu amigo João Matos que me possibilitou o desempenho da tarefa na perfeição.

- 22 horas - estava na aldeia, não vi viva alma, questionei-me se a procissão se iria realizar, e na dúvida, aguardei na junta de freguesia para entregar os respetivos artefactos.

- 23.30 horas - começou a aparecer público para assistir, mas como não existe qualquer organização para o evento, fico na expectativa, se irá existir número suficiente de participantes para a sua realização.

- 23.45 horas - dos becos e ruelas surgiram cerca de 25 almas, com um saco numa mão, contendo um lençol branco e uma coroa. Fiquei aliviado e satisfeito por constatar que a aldeia afinal ainda está apetrechada com um coletivo que luta para salvaguardar a sua tradição. Envolveram-se no lençol que traziam, cobrindo o corpo e a face, como de uma mortalha se tratasse, e apertaram-na com um cinto, colocando na cabeça a coroa feita de ramo seco de videira.

Estavam descalços e prontos para iniciar o cortejo. Os quatro guardas, dos quais eu fiz parte, vestidos com um hábito marron com capucho, talvez inspiração da ordem Franciscana, e com um varapau na mão, tínhamos por missão, auxiliar os penitentes na cega jornada e colocar ordem na assistência.

- Meia noite - o sino da igreja bateu as doze badaladas, apagaram-se todas as luzes da aldeia, e de dentro da igreja, os "regras" iniciaram os Martírios do Senhor da ladainha dos passos, finalizando cada frase com "tende misericórdia", à qual os restantes participantes não querendo ficar de fora da graça de Deus, responderam todos "e de nós".

Após a resposta coletiva ouviram-se três chicotadas. Abriu-se a porta da igreja e saiu o primeiro grupo de penitentes. De seguida a porta fechou-se e assim se iniciou a procissão.

Confesso que o meu papel de guarda no trajeto simbólico da Paixão de Cristo não foi lá muito bem desempenhado, constatei que sou dotado de um perfil pouco autoritário, mas o mais importante é que senti que a genuína paixão está na entrega desta gente.

Na próxima quinta-feira a nossa procissão sai à rua, estão todos convidados para assistir.

Mas se falo aqui das nossas ancestralidades não é por acaso, a singularidade de um património cultural imaterial genuinamente alicerçado numa comunidade, é das melhores ferramentas para a construção de múltiplos projetos, como da benéfica coesão social que possibilita a criação de micro riqueza para as nossas aldeias.

Por baixo de um lençol dos penitentes ou por de trás do bombo de Lavacolhos, não há classes sociais, se calhar, sem tomarem consciência, todos caminham no sentido de criar e reproduzir para si e para os outros, um rumo para uma sociedade melhor, mais justa e humanitária.

Como não faz sentido continuarmos à espera de um Dom Sebastião que nos salve, em Lavacolhos acontece.

A sua identidade imaterial alicerçada na memória coletiva, que tem sido salvaguardada por todos como uma celebração aos seus antepassados, possibilita a criação de uma família comunitária. Fomentada nos ancestrais, a aldeia transforma-se na casa de todos, e os seus fregueses, uns mais que outros, acabam por fazer obra.

O madeiro, todos os anos se acende para iluminar os nossos corações.

A associação recreativa de Lavacolhos, promove uma mesa farta para todos com a sua deliciosa couvada, e este ano não tenho qualquer dúvida que irá realizar a XXV caminhada - Rotas de Lavacolhos que termina sempre na praia fluvial com uma almoçarada para toda a aldeia.

Os nossos Lobos da Argemela todos os anos organizam os passeios todo terreno que atrai muita gente de fora.

As festividades continuam vivas com a dedicação dos seus mordomos e os nossos imigrantes estão sempre disponíveis para ajudar.

Os fregueses fora de qualquer organização associativa também fazem obra.

Com as rodilhas, que no passado auxiliaram as mulheres no transporte de carga à cabeça, transformaram-nas em murais que decoram a nossa aldeia na época natalícia. Até os efeitos aéreos para decorar as nossas festas, são produzidos pelos nossos fregueses com material reciclado, um projeto com direito a nomeação aos prémios do junta-te ao Gervásio da Sociedade Ponto Verde. Apesar do resultado não ter sido o desejado, as mangas continuam arregaçadas, porque este, é o caminho certo para deixarmos as futuras gerações, um mundo melhor.

É a hora, a hora de repicar os sinos, e se os sinos tocam na nossa igreja e ainda dão as horas para toda a aldeia, é graças à resiliência do Luís Filipe que de dois em dois dias vai dar corda ao relógio mecânico feito por um falecido artesão.

Portugal não é um país rico em recursos, por isso, a distribuição da riqueza é uma esmola que chega a conta-gotas, em vez de uma dinâmica e necessária receita, que possa desenvolver o nosso interior.

Contra esta realidade existencial, mais do que nunca é necessário desenhar novas estratégias, Aldeias identitárias enraizadas na singularidade do seu património cultural imaterial cuidado pela sua gente, poderá ser um dos caminhos.

Por isso, apelo à entrega de todos, e que esta jornada seja um dia de confraternização, reflexão, e se possível, nos forneça bons alicerces para a construção de pontes que possam atravessar as vicissitudes existentes.

Uma coisa é certa, só cresceremos com apoio da nossa gente, porque eles além de serem os verdadeiros resilientes, são os filhos da terra, os que poderão gerar a desejada riqueza.

Presidente da Junta de Freguesia de Lavacolhos

(Texto adaptado da comunicação feita no início do debate Interioridades- Aldeias Identitárias organizado pelo Jornal do Fundão)

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