Kyrie Irving e a liberdade de opinião sobre a pica que faz dói-dói
A fase regular da NBA vai começar esta semana, e aproximadamente quinhentos atletas profissionais vão atirar bolas na direcção geral de aros redondos. Entre eles não estará Kyrie Irving, base dos Brookly Nets, rookie do ano em 2012, campeão olímpico em 2016, sete vezes escolhido para o All-Star Game, e o rosto mais visível daquilo que, com excessiva flexibilidade semântica se poderia chamar o "movimento" anti-vacina na competição.
Depois de semanas de especulação sobre a sua vontade em cumprir as regras de vacinação do Estado de Nova Iorque, alimentada por pedidos evasivos de Irving para "respeitarem a sua privacidade" sempre que lhe fizeram perguntas sobre o assunto, foram os próprios Nets a informar publicamente que o atleta não treinaria nem jogaria com a equipa enquanto não cumprir os requisitos. Em resposta, Irving quebrou finalmente o silêncio (quebrar o silêncio é uma das suas especialidades) com um live no Instagram - um documento contemporâneo fascinante, não tanto pelas coisas que diz, mas por ser tão representativo de uma maneira de dizer coisas.
Ao longo de 23 minutos, Kyrie fala sobre "liberdade" e "integridade" e "escolha pessoal"; diz que "toda a gente tem direito às suas opiniões", que quer permanecer "fiel a si próprio", e exercer "a responsabilidade de usar a minha voz para dizer o que penso". "Esta é a minha vida, posso fazer o que quero", conclui. "Este é o meu corpo, ninguém pode obrigar-me a fazer o que não quero com o meu corpo".
Decomposto nos seus elementos constituintes, tudo isto é exaustivamente familiar - estilhaços avulsos de três ou quatro dialectos cruzados: a infantil e infantilizante noção de "Liberdade" que é uma das bases da religião cívica americana - uma ideia cujos limites são tão claros e bem definidos que milagrosamente nunca tocam, nem afectam, nem são afectados por qualquer outra ideia; o vocabulário exaltado da emancipação e da autonomia, que permeia várias retóricas de activismo desde a luta anti-esclavagista; e o glossário típico dos reality shows, com o robusto narcisismo inadvertido de quem quer colocar no centro de todas as histórias o verdadeiro protagonista da realidade.
Outras escolhas lexicais são igualmente familiares. Quando Kyrie elogia o mérito de "pesquisar os assuntos", e intima as pessoas a "usarem a lógica" ou a "não acreditarem em tudo", e abana a cabeça lamentando que "vivemos tempos doidos!", reconhecemos os sinais de quem ficou refém das paranóias mais intrigantes que por acaso o encontraram na internet - e a quem, evidentemente, nunca passou pela cabeça aplicar o mesmo padrão de cepticismo a qualquer outro assunto. Uma coisa é a liberdade de Kyrie Irving para escolher não ser vacinado com esta vacina específica. Outra seria a liberdade de, por exemplo, todos os funcionários dos restaurantes que Kyrie Irving frequenta para nunca lavarem as mãos antes de lhe servirem um hamburguer, por escolha pessoal, e para serem fiéis a si próprios.
Em The Big Lebowski, Jeff Bridges ouve parte de um discurso de George Bush na fila do supermercado, e algumas cenas mais tarde, socorre-se de um fragmento desse discurso ("este ataque não vai passar impune") para compensar o seu défice de eloquência. Há algo semelhante na improvisação auto-didacta de qualquer discurso anti-vacina, e no esforço para organizar uma posição coerente a partir de um aleatório e aflitivo sortido de palpites, suspeitas e ressentimentos em segunda mão. As frases e expressões têm todas um significado, mas a sua principal função é servirem como signos flutuantes: existem para estarem ali e se alimentarem umas às outras, formando um sistema internamente coerente, funcionalmente opaco, e futilmente auto-sustentável.
Sendo um dos melhores jogadores da NBA há quase uma década, Kyrie tornou-se alvo frequente de perfis na imprensa, e muitos desses perfis foram-no descrevendo (a partir de certa altura, quase automaticamente) como um dos atletas mais "inteligentes", ou "eloquentes" da competição. Jornalistas mais razoáveis optavam por substituir esses generosos atributos por vocábulos mais elásticos, como "interessante" ou "idiossincrático".
Por vezes, Kyrie manifestou essa idiossincrasia aparecendo em podcasts para expressar dúvidas sobre a "narrativa oficial" de "a Terra ser redonda"; noutras ocasiões, pelo apoio público a causas políticas, ou com gestos de filantropia mais discretos (como quando ofereceu sem alarido uma casa à família de George Floyd). Esta variedade não é garantia de inteligência ou eloquência - mas é certamente interessante, embora o interesse possa ser empolado. Um artigo no The Nation em Janeiro deste ano (antes da saga anti-vacina) intitulado "Kyrie Irving não quer ser o homem que vocês querem que ele seja", citava Rosa Luxemburgo, comparava-o a Muhammad Ali, e tratava-o em traços gerais como uma reencarnação de Nelson Mandela - o que mostra, antes de mais, quão vulnerável é a imprensa desportiva (em qualquer país) ao menor sinal de heterodoxia, e quão disponível para aclamar como uma "personalidade única" qualquer pessoa capaz de fugir ao discurso habitual de "trabalhar", "pensar jogo a jogo" e "levantar a cabeça".
Não é sequer improvável que a ideia de uma semelhança ou correspondência entre a postura, por exemplo, de Colin Kaepernick e a postura de Kyrie Irving tenha passado pela cabeça de alguém - a cabeça de Kyrie Irving. A sensação que fica, ao ouvirmos a sua trôpega retórica de integridade e sacrifício, é que o conteúdo do protesto é subordinado à forma do protesto: a ideia de tomar publicamente uma posição de princípio parece muito mais apelativa do que o interesse em compreender ou explicar que princípio é esse.
Talvez Kyrie seja demasiado super-estrela - e o seu ego demasiado "interessante" e "idiossincrático" - para o vermos como representativo de dinâmicas mais amplas. Se o seu discurso de rejeição de uma vacina acaba por soar exactamente igual aos outros (incluindo os que se especializam em instrumentalizar estas posturas por motivos oportunistas), isso também se deve a ter sido seleccionado a partir de conjunto bastante restrito de opções.
Uma das características basilares da vida contemporânea é a multiplicação de oportunidades para assimilar qualquer questão pelo filtro da luta política, e a proporcional redução de actos disponíveis para participação política activa. A "política" é predominantemente um espectáculo do qual se é espectador, e ao qual se pode reagir através de opiniões - opiniões quase sempre determinadas por uma afiliação prévia e manifestadas como simples escolhas binárias: é-se a favor de alguma coisa, ou contra alguma coisa. Qualquer reivindicação, qualquer frustração legítima, qualquer vontade de afirmar uma inclinação ideológica só vai encontrar esse escape: acomodar-se à forma de mais uma escolha binária, e transformar-se numa opinião pública, acrescentada a todas as outras.
A pobreza e insuficiência deste esquema, não só como instrumento para forçar qualquer tipo de mudança social substancial, mas até para a função subsidiária que supostamente devia servir (descarga emocional) é sentida até por quem não o interroga o suficiente para conseguir resistir às suas implicações mais mórbidas. Mas quão tentador deve ser deparar com um tema em que a divisão de opiniões não segue a habitual matriz 50/50; qualquer posição minoritária começa a parecer corajosa só em virtude dessa condição minoritária. Nada disto tem rigorosamente nada a ver com "liberdade", mas apenas com o mesmo conjunto pré-determinado de opções, forçado a suportar todo o peso acumulado de uma identidade política que não tem outro modo de se expressar.
Mas Kyrie Irving conseguiu seleccionar um assunto do catálogo, e escolher uma opinião disponível, e de repente, como que por magia, aquilo que quase nunca acontece - consequências colectivas visíveis, resultado de uma acção individual - começou a acontecer, mesmo que acção tenha sido irrelevante, e mesmo que a forma que as consequências tenham assumido aconteça todos os dias: uma vasta e vaga multidão (nas televisões, nos jornais, nas redes sociais) a dar opiniões sobre as opiniões de Kyrie Irving - íntegro e heróico e livre no centro absoluto da história, o incontestado MVP da arte de ter opiniões.
Escreve de acordo com a antiga ortografia