Kissinger e a guerra evitável
A 27 de maio, Henry Kissinger, um dos mais importantes estrategas da política externa americana, um dos analistas geopolíticos mais influentes do mundo, e um escritor prolixo (lançou em novembro de 2021 um livro sobre Inteligência Artificial) faz 100 anos. Na edição de 20-26 de maio, a revista The Economist sintetiza uma conversa de cerca de 8 horas com Kissinger.
Como é habitual numa abordagem americana das relações geopolíticas internacionais, parte-se da [super]potência americana e seus interesses para analisar o resto... Kissinger conhece bem o mundo e sabe que este é hoje plural, multipolar, em rápida mutação e com clivagens várias e diversos tipos de soft power que vão bem para além de saber quem é a potência dominante... Daí a complexidade na definição de estratégias geopolíticas. Esta entrevista ao The Economist está balizada por esta abordagem com baias tão americanas. Pelo que a Europa pouco é referida. Kissinger não parece estar hoje tão seguro de que "se a Europa e a América não restabelecerem uma intensa relação transatlântica, a Europa acabará por ser um apêndice da Ásia"; queixa-se que "a natureza desta ligação é muitas vezes referida como um regresso à liderança americana". Mas tem a elegância (paternalista, mas bem-educada) de acrescentar que "pode acontecer que o que a Europa busca seja autonomia colaborativa, não orientação". Pronuncia-se ainda sobre a Ucrânia, alterando a sua posição de 2014 em relação à sua neutralidade e à sua [não] adesão à NATO.
Mas a entrevista centra-se na relação entre os EUA e a China -- um mano-a-mano bipolar, tão ao gosto do público americano. O drama, para Kissinger, é que "ambos os lados se convenceram que o outro representa um perigo estratégico", diz. "Estamos a caminho de um confronto entre grandes potências." De acordo com The Economist, "Kissinger está alarmado com a intensificação da competição entre a China e a América pela preeminência tecnológica e económica." Kissinger considera que "estamos na situação clássica de pré-I guerra mundial", em que "nenhum dos lados tem muita margem para concessões políticas e qualquer perturbação do equilíbrio pode conduzir a consequências catastróficas" (não é bem assim, o lado chinês não tem uma situação de radicalização bipolar na política interna... mas percebe-se a mensagem). Não é o primeiro político ocidental a alertar para uma guerra "evitável", como a definiu K. Rudd, ex-PM da Austrália e sinólogo insigne.
Curiosamente, muitos dos atuais políticos americanos que vêm aprovando medidas progressivamente mais hostis em relação à [ascensão da] China, provavelmente basearam-se nos ensinamentos do próprio Kissinger que dizia em 2011 que "os EUA não deveriam permitir que a expansão económica e política da China reduzisse o poder dos EUA".
Na entrevista ao The Economist, Kissinger refere ainda que a liderança da China se ressente do discurso dos "políticos ocidentais" sobre uma "ordem baseada em regras", quando, para eles, o que isso realmente significa são as regras da América e a ordem da América.
Em bom rigor, a solução para a atual crispação entre a China e os EUA já o próprio Kissinger a havia apresentado, em junho de 2011, num famoso "Debate Munk [702]", que deu origem ao livro O Século XXI pertence à China?; Kissinger respondendo negativamente a J. Geiger sobre se a China se vai tornar a potência dominante, advertia que "precisamos chegar a um ponto em que a questão da dominância não ofusque o relacionamento como um todo. Porque nenhum dos dois lados será capaz de alcançar dominância, e o esforço para alcançá-la pode levar a conflitos que façam desmoronar todo o sistema internacional." Além disso, [no referido "Debate Munk"] Kissinger sugeria que "a China e os Estados Unidos deverão trabalhar em conjunto, consultando-se mutuamente, e não devem cair numa posição de confronto". Mas acrescentava ser preciso "evitar a impressão de que estão a tentar administrar o mundo, porque existem outros países de grande magnitude - por exemplo, a Índia -- que devem desempenhar papel relevante." E reconhecia que, "mesmo assim, o mundo agora (2011!) é tão multipolar e as questões são tão globais que qualquer tentativa de dois países, por mais poderosos que sejam, de impor as suas preferências provocaria uma reação por parte dos outros que colocaria tudo a perder."
Nesta entrevista ao The Economist, Kissinger também adverte contra uma má interpretação das ambições da China. Em Washington, "dizem que a China quer dominar o mundo... mas o "que eles [na China] querem [é] ser poderosos", diz ele. "Eles não pretendem o domínio do mundo no sentido hitleriano", diz ele. Como um académico, Rohan Mukherjee, escreveu recentemente, "Pequim pugna por ser tratada em pé de igualdade com a América no palco mundial".
De acordo com o The Economist, "na opinião [de Kissinger], o destino da humanidade depende da capacidade da América e da China para se entenderem". "É possível a China e os EUA coexistirem sem a ameaça de guerra total com o outro?" Kissinger responde: "pensava e continuo a pensar que é possível". Esperemos que continue a ser lido atentamente pelas elites americanas...
Consultor financeiro e business developer
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