Kadhafi – dez anos

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Assinalou-se nesta semana dez anos sobre a morte do coronel Muammar Kadhafi. Figura peculiar a todos os níveis, de tal forma que se tornou no "Samora Machel" da anedota magrebina e árabe. De tal forma que nunca ninguém acreditou numa África sem fronteiras e com moeda única, mas esta ideia promovida por este excêntrico ganhava logo a perigosidade de ser realizável. Kadhafi virou-se para África, precisamente após os outros novos-ricos do Golfo terem percebido o perigo que este representava. Porquê? Porque não se ficava pelas palavras, era um tipo de acção. E em África, depois deslumbrou, tendo sido o principal financiador da reestruturação da Organização de Unidade Africana para União Africana.

A Jamahiriya líbia, o "Estado das Massas" líbio, tratou-se da sua principal criação, uma utopia própria que apenas difere da utopia concebida por Thomas Morus, porque esta foi mesmo realizada. Por isso mesmo Kadhafi não atingiu o panteão dos teóricos, porque se expôs ao fracasso. E a Jamahiriya falhou porque este prático negligenciou aquilo que os teóricos também negligenciam. Nunca contemplam a inveja e o ciúme enquanto vector na equação da vida. Este "Estado das Massas" tratou-se de uma pirâmide social de boas intenções, que organizou o país em camadas de sovietes que se elegiam do lúmpen até ao topo. Topo esse que não tinha um presidente, um rei, mas sim o líder da revolução, título excêntrico, mas que numa primeira abordagem por parte das autoridades internacionais (Nações Unidas, Tribunal Penal Internacional) o protegia de acusação directa. Não se poderia responsabilizar ou intimar o presidente da Líbia, já que este não existia! Chegava-se sempre lá por associação, por relações tautológicas de causa-efeito.

A sociedade líbia de Kadhafi organizava-se em comités, desde o bairro até ao topo. Ou seja, tratou-se de um modelo que, em teoria, permitiria ao cidadão comum fazer passar de comité em comité as suas queixas, preocupações e sugestões de solução até as mesmas chegarem ao comité ou à figura com poder de decisão. Em certa medida e grosso modo, trata-se do modelo herdado do Império Otomano e das monarquias árabes, cuja distância entre o súbdito e o monarca era tentada ser encurtada desta forma, permitindo ao primeiro um sentimento mínimo de envolvimento e pertença ao todo que lhe regia a vida.

Qual é o problema principal deste modelo aos nossos olhos?

A obrigatoriedade da institucionalização da figura do bufo do bairro, normalmente o chefe de comité. Digo institucionalização porque o bufo, o muqaddam, é funcionário da junta de freguesia, da Mukata3a (assim mesmo com um 3 para a fonética correcta), sempre chamada de mucáta pelos jornalistas portugueses que se deslocavam a Ramallah para entrevistarem Yasser Arafat. Se pensava que se tratava de um palácio, era uma mera junta de freguesia, uma instalação com um carimbo próprio que lhe confere autoridade administrativa. Por isso mesmo, um refúgio oficial e reconhecido internacionalmente para Arafat.

A importância destes bufos é tal que foram os primeiros a ser aumentados no salário durante a Primavera Árabe. Para nós e por isso coloco "problema aos nossos olhos" na questão, a resposta é óbvia. Vamos à missa, mas gostamos pouco de padres! No caso líbio, certamente não haveria outra solução para dar um sentido de união nacional, num país dividido em três regiões, cada uma com o seu azimute (Europa, Oriente e África) e subdividida em cerca 140 tribos.

Politólogo/arabista. www.maghreb-machrek.pt.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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