Já não está cá quem falou. Jocelyn Wildenstein (1945-2024), a rainha das plásticas

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Foi certamente a pensar em historietas como esta que Scott Fitzgerald disse um dia que “os ricos são diferentes de nós”, ao que Hemingway replicou, secamente ,“sim, têm mais dinheiro”. No caso, muito dinheiro, biliões dele, uma fortuna pornográfica, como pornográfica foi a existência terrena de Jocelyn Wildenstein, finada de embolia pulmonar num hotel de Paris no último dia de 2024.

Afiança o companheiro, Lloyd Klein, designer de moda nado ao Canadá, que a bicha partiu tranquilamente quando ambos tiravam uma soneca reparadora antes de se vestirem de rigueur para os festejos de Ano Novo, que suspeitamos iriam ser de muita arromba e não menos estrondo, pois foi essa a forma com que Jocelyn sinalizou a sua meteórica passagem pelo planeta Terra, onde não deixou marca de espécie alguma. “É muito triste adormecermos junto daquela que foi a nossa companheira de 21 anos, preparando-nos para as celebrações do novo ano, e acordarmos com ela fria ao nosso lado”, disse Klein à revista People, num desabafo sentido, ainda que um pouco tétrico. Duas noites antes, tinham jantado no Ritz, no decurso de uma visita-relâmpago à Cidade-Luz para assistirem à Fashion Week da Chanel, e tudo parecia correr pelo melhor, salvo o ligeiro inchaço nas pernas da Jocelyn, ao que parece devido à flebite que acabaria por vitimá-la, deixando-a sem ar no cérebro, tal como é noticiado, pasme-se, pelo Região de Águeda na sua edição de 2 de Janeiro de 2025, em peça assinada pela distinta jornalista Cláudia Neves.

Jocelyn Wildenstein, a quem chamaram “Catwoman” à conta das muitas plásticas a que sujeitou o fácies, nasceu como Jocelyne Alice em Lausanne e no dia 7 de Setembro, sendo mais difícil de dizer o ano, que uns garantem ser 1945, outros asseveram ter sido 1940. O pai Armand trabalhava numa loja de artigos de desporto, a mãe Liliane era doméstica e, apesar de Jocelyne jurar que teve uma infância “fantástica”, com mergulhos num lago vizinho e férias de Inverno na neve, pouco se sabe dela até às suas 17 primaveras, pelos vistos escaldantes, idade com que saiu de casa de seus pais para ir viver com Cyril Piguet, produtor cinematográfico suíço que a levou para Paris, sempre Paris. Era então uma estampa e, não tendo feito carreira pública na 7.ª Arte, manteve relacionamentos privados com vária gente desse ofício, como Sergio Gobbi, realizador franco-italiano que rubricou fitas pavorosas, com destaque para Un Beau Monstre, de 1971, a história de um sádico com Helmut Berger e Charles Aznavour, e International Prostitution, de 1980, que nos abstemos de comentar.

Aos 31 anos, e sem que saibamos como nem porquê, Jocelyn estava no Quénia, ao que parece triste, e numa caçada nocturna aos leões conheceu e deu um beijo a Alec Wildenstein, descendente de uma dinastia de marchands, filho de um reputado especialista em Impressionismo que, ao falecer em 2001, lhe deixou uma fortuna estimada em 10 mil milhões de dólares e aquela que era considerada a maior colecção privada de arte do mundo.

Casaram em Las Vegas, tiveram uma Diane e um Alec Jr. e levaram uma vida das arábias, com gastos mensais da ordem de um milhão de dólares (!), até ao dia, ou à noite, em que Jocelyn flagrou o marido na cama com uma modelo russa de 19 anos, de seu nome Liouba Stoupakova. Apanhado no acto em Manhattan, ademais no leito conjugal do casal, e à falta de melhores argumentos, Alec brandiu um revólver contra Jocelyn, que logo ali chamou a polícia, e esta fê-lo passar o resto da noite na esquadra, estamos em crer que sozinho.

Além da russa ocasional e de dez telas de Bonnard, a casa da East 64th Street era um mini-zoo com um leopardo negro, um lince e um tubarão-de-areia que vivia num aquário incrustado na parede. Não contentes com tanta bicharada, os Wildenstein ainda eram donos de dois tigres que estavam metidos numa cela de vidro à prova de bala dentro da piscina da sua reserva de 26 mil hectares no Quénia, bizarrias que se vieram a saber no decurso do tumultuoso divórcio do casal, em cuja roupa suja avultou um vestido Chanel para ela, no valor de 350 mil dólares, destinado a uma festa de Ano Novo, contas telefónicas mensais de 60 mil dólares e 80 mil dólares pagos por ele a um fotógrafo da moda para fazer o portefólio de uma jovem russa aspirante a modelo, julgamos que a Stoupakova. Mais disse o Wildenstein em juízo que as constantes plásticas da esposa estavam a sujeitá-lo ao ridículo público (os tabloides chamavam-lhe a ela “A Noiva de Wildenstein”, entre outros mimos) e que, em resultado disso, reduzira temporariamente a mesada da Jocelyn de 200 mil para 50 mil dólares (o juiz mandou repor os 200 mil, conquanto não fossem gastos em cirurgias palermas). Jocelyn, de seu lado, obtemperou que era o Alec quem a pressionava às plásticas, por causa da compita com as russas e afins, mas o facto é que ela continuou a fazê-las, e às grosas, já decretado o divórcio.

Da refrega em tribunal, seguida pari passu pela imprensa rosa-choque, Jocelyn recebeu, a saber: 2,5 mil milhões de dólares, o rancho do Quénia com o par de tigres e uma pensão alimentícia de 100 milhões de dólares durante 13 anos. Vai daí, carregou ainda mais nas plásticas, gastando nelas para cima de dois milhões de dólares, com resultados que estão à vista de todos e que nos permitem concluir, sem favor nem esforço, que foi dinheiro muito bem gasto.

A par disso, Jocelyn, que algumas vozes afiançam que viu apenas 500 milhões no divórcio, tinha um trem de vida algo puxado, pelo que acabou obrigada a vender as suas jóias com temas de gatos, isto em 2002, a escapar por um triz de ser despejada por rendas não pagas do seu apartamento na United Nations Plaza, em 2013, a ser processada pela inspecção de trabalho de Nova Iorque por não pagar a uma assistente pessoal, em 2014, e a declarar falência em 2018, alegando que o Velázquez que tinha afinal era falso, que um dos seus quadros de Cézanne tinha sido subvalorizado e, ponto decisivo, que não possuía fontes de rendimento.

Entretanto, em 2003 conheceu Lloyd Klein, mas o relacionamento que com ele manteve foi no mínimo tempestuoso, a pontos de, em 2016, acabarem ambos presos no apartamento que tinham na Trump World Tower por estarem os dois à trolha. Um ano depois, reconciliaram-se, ele pediu-a em casamento, ofereceu-lhe um anel de 26 quilates na mansão de Versace em Miami, mas o certo e sabido é que, tantos anos volvidos, não se matrimoniaram. Daí que seja possível, até provável, que Lloyd Klein, pese ter estado 21 anos a acordar ao lado de um monstro, saia desta novela toda a ver Braga por um canudo.

Alec Wildenstein faleceu em 2008, pelo que seríamos tentados a dizer que, nesta tragicomédia toda, quem se safou foi a russa, com quem ele se casara uns anos antes. Ou não: em Março deste ano, um tribunal francês concluiu que o império dos Wildenstein era uma gigantesca operação de lavagem e fraude fiscal e condenou o patriarca da família, Guy Wildenstein, de 78 anos, a quatro anos de cadeia (a russa também foi condenada, mas com pena suspensa). Tratou-se, nas palavras dos procuradores, da “maior e mais sofisticada fraude fiscal da história moderna de França”.

Tudo o que é sólido se dissolve no ar, dizia já o velho Marx, o grande herói desta saga. De facto, e ainda que involuntária, melhor propaganda não há a uma sociedade sem classes nem propriedade privada.

Historiador.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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