Já cá não está quem falou . Shiu Ka-chun (1969-2025), um herói da liberdade
Por cá no Ocidente abundam os valentes do Facebook e os bravos do Instagram, gente que diz mata e que esfola diante de um ecrã em branco, que grita, esbraceja e que se indigna muito, muitíssimo, ao teclar nas teclas do seu portátil, ou de um smartphone do último modelo, tudo no conforto alcatifado do lar ou escritório. Heróis como este que agora morreu é mais difícil de ver, em parte por sorte dos regimes que temos, noutra por azar dos cobardes que somos.
Shiu Ka-chun, que faleceu no passado 10 de Janeiro, de cancro no estômago e, aos 55 anos, foi um activista dos verdadeiros - não um activista de si mesmo e da sua vaidade, como muitos dos que para aí proliferam nas nossas repúblicas -, daqueles que até a prisão conheceram e que, não obstante isso, continuaram a lutar contra um regime tirânico que não hesita em prender, em torturar e em matar, nem sempre por esta ordem.
Foi um dos líderes dos protestos em Hong Kong de 2014, o “Occupy Central with Love and Peace”, a que também chamaram “Primavera Asiática” ou “Revolução dos Guarda-Chuvas”, pois foi com eles que os manifestantes pró-democracia se defenderam das sucessivas vagas de gás lacrimogénio lançadas pela polícia, que na repressão dos defensores da liberdade lançou mão de tudo, até da conivência das sinistras tríades do crime organizado. Mais de 200 gangsters infiltraram-se entre os manifestantes, houve violações de mulheres e espancamentos brutais, como o do activista Ken Tsang. Enquanto isso, o regime de Pequim encarcerava dezenas e dezenas de pessoas em Hong Kong e na China continental, algumas das quais desapareceram para sempre, afiançou-o a Aministia Internacional.
Shiu Ka-chun nasceu em 3 de Junho de 1969, em Hong Kong, no seio de uma família de fracos recursos da classe trabalhadora, e formou-se em Serviço Social na Universidade Baptista da cidade, onde começou a dar aulas em 2007. Em paralelo, trabalhou como assistente social junto dos jovens e dos mais desfavorecidos e tornou-se uma voz conhecida de todos, seja pelos programas em que participava na rádio, seja pelas colunas que escrevia nos jornais.
Em 2014, esteve na primeira linha dos protestos pró-democracia, que contestavam a reforma eleitoral proposta pelo Congresso Nacional do Povo, a qual visava restringir drasticamente a transparência do sufrágio no território, obrigando, entre o mais, a que os candidatos à chefia do executivo tivessem o aval prévio do Partido Comunista da China.
Conhecido entre os amigos e os manifestantes como “Garrafa”, devido à grossura das lentes dos óculos que usava, Shiu integrou desde o início o núcleo duro dos líderes dos protestos, onde se destacavam os nomes de Benny Tai, Chan Kin-man e Chu Yiu-ming, o primeiro dos quais foi condenado o ano passado a dez anos de cadeia por “subversão”.
Na sequência do seu envolvimento na “Revolução dos Guarda-Chuvas”, Shiu foi detido sob acusação de perturbação da ordem pública e condenado em 2019 a oito meses de prisão. No dia seguinte a ser condenado, foi internado num hospital devido a graves problemas cardíacos, que o obrigaram a ser submetido a uma angioplastia, após o que, a 7 de Maio daquele ano, começou a cumprir pena. Entretanto, em 2016 havia sido eleito para o Conselho Legislativo de Hong Kong, mas as autoridades prisionais recusaram-lhe autorização para que pudesse participar nas reuniões daquele órgão. Pouco depois de ser libertado, os dirigentes da Universidade Baptista comunicaram-lhe que o seu contrato não iria ser renovado, isto apesar das excelentes avaliações que tinha como professor e do prestígio de que gozava entre os alunos. Tratou-se, disse então, de um gesto de “perseguição política”, como é mais do que óbvio e patente, excepto para aqueles que não abdicam das delícias do TikTok ou dos preços baixos dos carros eléctricos made in China.
Em 11 de Novembro de 2020, renunciou ao seu cargo no Conselho Legislativo, juntamente com outros catorze colegas, em protesto contra a destituição de quatro deputados pró-democracia ditada por decisão do governo de Pequim. Pouco depois, em Dezembro desse ano, e com base nas suas memórias do cárcere, anunciou a criação de um movimento de defesa dos direitos dos reclusos, o “Wall-Fare”, que escrutinou as condições dos detidos na sequência das sucessivas vagas de protestos a favor da liberdade em Hong Kong, apresentando várias queixas contra as autoridades prisionais, designadamente por interferência abusiva na privacidade dos reclusos (v.g., nas refeições que lhe eram levadas pelas famílias) e pelo calor insuportável vivido nas celas. Foi sol de pouca dura: em Setembro de 2021, Shiu Ka-chun anunciou a dissolução do “Wall-Fare” devido às inúmeras pressões políticas que o movimento sofreu na sua efémera existência.
Em Outubro do ano passado, queixou-se de um desconforto gástrico, diagnosticado, semanas depois, como resultado de um cancro no estômago em estado avançado. Sujeito a uma intervenção cirúrgica de emergência, seria hospitalizado em Dezembro e no início deste ano encontrava-se já em cuidados paliativos. Morreu no passado dia 10 de Janeiro, no Hospital Queen Elizabeth de Hong Kong.
Três dias depois, o The New York Times noticiou que a China teve um superavit comercial recorde no ano passado, no valor de 990 mil milhões de dólares, quase um trilião, uma proeza jamais alcançada por potências como os Estados Unidos, a Alemanha ou o Japão. Em 2024, o ano que findou há dias, as universidades chinesas produziram mais licenciados em engenharia e em matérias congéneres do que todos os licenciados em quaisquer áreas de todas as universidades norte-americanas.
Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia