Já cá não está quem falou. François Ponchaud (1939-2025), um padre no inferno
É possível, até provável, que o nome de François Ponchaud pouco nos diga, distraídos que andamos do essencial do mundo. Nasceu em 8 de Fevereiro de 1939 (em Sallanches, na Alta Sabóia) e morreu há dias, 17 de Janeiro (em Lauris, Provença-Alpes-Côte d’Azur). 85 anos, portanto. O que fez com eles foi o seguinte: quase seis décadas passadas a viver no Oriente, 56 anos para sermos precisos, trabalhos de missionário, padre católico, denunciador dos crimes dos Khmers Vermelhos, o regime mais letal do século pretérito, passado ainda presente.
Olhemo-lo então mais de próximo: François Ponchaud, como se disse, viu a luz em 1939, em Sallanches, e era o sétimo dos 12 filhos de um agricultor e autarca da terra, ligado ao MRP, Mouvement Républicain Populaire, de inspiração democrata-cristã. Em 1958, deu entrada no seminário de Annécy, mas, passado um ano, ao ser convocado para o serviço militar, perguntou aos superiores se poderia cumpri-lo na Argélia, pois, como dirá anos depois, o que ia sabendo da guerra ali travada deixava-o profundamente chocado. Sem ter obtido uma resposta esclarecedora por parte dos directores do seminário, escolheu a força mais violenta de todas, e a mais exposta aos horrores da guerra, os paraquedistas. Ao fim de 28 meses em funções, concluiu o óbvio, “a guerra é um mal absoluto”, e voltou ao seminário em 1961, tornando-se padre jesuíta e sendo ordenado três anos depois.
Inspirado no exemplo do padre André Mabboux, natural de Sallenches como ele e que servia no Oriente (primeiro na China, em Sichuan, de 1947 a 1951, e depois na Tailândia, onde morreu em 1971), François Ponchaud dirigiu-se em 1965 às Missões Estrangeiras de Paris, pedindo que o enviassem para a Ásia. Em vez da China, como queria, decidiram colocá-lo, no “Vietname do Sul”, o nome dado ao Camboja na linguagem das missões católicas.
Estabelecido em Chroy Changvar, nos arredores da capital, Phnom Penh, o jovem missionário, então com 26 anos, aprendeu a língua khmer, maravilhou-se com a religião budista e com os costumes dos camponeses. Com estes partilhou uma funda aversão aos vietnamitas, que até ao fim da vida o levaria a dizer que ente eles e os khmers existia uma absoluta “incompatibilidade nos planos étnico e cultural.”
Ainda assim, ajudaria milhares de vietnamitas alvos dos pogroms lançados pelo general Lon Nol, após ter deposto o príncipe Sihanouk em Março de 1970. Ao assistir à matança dos vietnamitas, ao incêndio das suas casas e ao saque dos seus templos e igrejas (entre os católicos do país, muitos são de origem vietnamita, como assinala o Le Monde no obituário de Ponchaud), o jovem padre François não hesitou. Numa só ocasião, e correndo tremendos riscos, conseguiu salvar centenas de vietnamitas, evacuando-os de barco do país, e, até morrer, falou inúmeras vezes deste hediondo crime do governo pró-ocidental de Lon Nol.
Em Abril de 1975, quando os Khmers Vermelhos de Pol Pot tomaram Phnom Penh e o poder, François Ponchaud refugiou-se na embaixada francesa e foi expulso do país pouco depois, em Maio. Antes disso, testemunhou um episódio horripilante, ao servir de intérprete entre o vice-cônsul Jean Dyrac e os Khmers Vermelhos, que exigiram a entrega de centenas de mulheres e homens refugiados na embaixada (até ao fim da vida exonerou Dyrac de responsabilidades, dizendo que este não tinha qualquer alternativa a entregar aqueles desgraçados a uma morte certa). Ponchaud seria um dos últimos estrangeiros a sair do Camboja (foi ele que entregou as chaves da embaixada francesa aos Khmers), mas, antes de partir rumo à Tailândia, ainda teve ensejo de assistir às primícias de um dos regimes mais bárbaros do século XX, o do Partido Comunista do Kampuchea, que, de 1975 a 1979, dizimou entre um milhão e meio a dois milhões de pessoas (fala-se em 2,3 milhões de vítimas), cerca de 25% da população do país, números que, em termos comparativos, conseguem superar os de Hitler ou de Estaline, e até mesmo os da China de Mao, a grande financiadora da loucura criminosa de Pol Pot (estima-se que 90% da ajuda externa ao regime era oriunda de Pequim).
No Ocidente, e como sempre, muitos andaram inebriados com o mundo radioso dos Khmers, com as promessas de um “homem novo” feitas por Pol Pot (do mesmo modo como muitos, por pura cegueira ideológica, apoiaram os delírios assassinos de Kim Il-sung, na Coreia do Norte, e a sua doutrina “juche”, ou o regime dos aiatolas no Irão). Foi justamente por causa disso, por causa de um artigo laudatório dos Khmers nas páginas do Le Monde, que o padre Ponchaud, então já a viver em França, decidiu escrever uma carta indignada ao director daquele jornal, acompanhada de um dossiê sobre as atrocidades de Pol Pot. Retomara então o seu velho projecto de traduzir a Bíblia para khmer e o conhecimento único que possuía desta língua permitiu-lhe ler os documentos oficiais do novo regime, ouvir as suas emissões de rádio, contactar sobreviventes, visitá-los na Europa, no Canadá, nos Estados Unidos, em face do que o Le Monde o convidou a estabelecer uma “tribuna” naquele jornal, com crónicas regulares sobre o genocídio no Camboja, que lhe valeram ser apodado de mentiroso ou de ignorante por eminências académicas como Noam Chomsky ou Steve Heder.
Em 1977, publicou um livro devastador, Cambodja, année zéro, traduzido em oito línguas, o qual, em conjunto com os seus artigos no Le Monde, constituiu uma das primeiras grandes denúncias dos Khmers Vermelhos, talvez mesmo a primeira, que finalmente despertou a opinião pública do Ocidente para os horrores do regime de Pol Pot.
A queda deste, em 1979, não o entusiasmou, porém, pois fora ditada por uma intervenção militar vietnamita, também ela sanguinária. Regressado ao Oriente em 1985, e trabalhando em campos de refugiados na Tailândia, François Ponchaud alertou novamente o mundo para as atrocidades que continuavam a ser cometidas no Camboja, país onde retornou em 1993, dois anos após os acordos de Paris. Além de ter fundado o Centro Católico do Camboja, para formação de missionários, pugnou pelo aprofundamento do diálogo inter-religioso e por um melhor conhecimento do budismo e dos seus ensinamentos éticos.
Em 2007, quando um tribunal internacional começou a julgar, sob a égide da ONU, alguns antigos líderes do regime comunista, o padre Ponchaud foi chamado a depor naquele processo, mas disse que, antes de julgarem os Khmers, deveriam sentar no banco dos réus Richard Nixon e Henry Kissinger, os mandantes dos bombardeamentos que na década de 1970 pavimentaram a subida ao poder de Pol Pot.
Do mesmo passo, criticou o que então via no Camboja: os excessos do governo neoliberal de Hun Sen, com a passividade cúmplice da Casa Real de Nordom Sihanouk e, agora, desde 2004, do seu filho Norodom Sihamoni; o paternalismo das ONG ocidentais; as abomináveis campanhas de conversão levadas a cabo pelos evangélicos norte-americanos.
Em 2008, abandonou a capital e fixou-se no centro do país, nas imediações de O Rérang Euv, onde, com a colaboração de uma pequena organização humanitária, se dedicou a reconstruir os antigos canais de água feitos pelos Khmers Vermelhos. Regressaria a França em 2021 e, há dias, faleceu na casa de repouso dos padres das Missões Estrangeiras de Paris, em Lauris. Por isso, paz à sua alma, que a teve e bela.
Nota - chega hoje ao fim a minha colaboração com o Diário de Notícias, iniciada em Julho de 2018. Agradeço a confiança das sucessivas direcções do DN e o interesse, a tolerância e a paciência dos leitores que, durante sete anos, acompanharam os meus escritos neste jornal. Muito obrigado.
Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia