Já cá não está quem falou. Charles Person (1942-2025), viajante da liberdade
Filho de um enfermeiro e de uma doméstica, aluno excelso em ciências e em matemáticas, foi aceite no M.I.T., mas não pôde frequentá-lo por não ter bolsa de estudos. Candidatou-se então à Georgia Tech, uma universidade pública, mas foi rejeitado devido à cor da sua pele. Sonhando ser engenheiro nuclear, matriculou-se depois no Morehouse College, uma universidade privada de Atlanta aberta a negros, onde estudaram, entre tantos outros, Martin Luther King, Jr., Samuel L. Jackson e Spike Lee.
Ah, sim, já o esquecíamos: chamava-se Charles Person, nasceu em Atlanta, em 27 de Setembro de 1942 e morreu no passado dia 8 de Janeiro, aos 82 anos e de leucemia, informou a filha Keisha. Foi o mais novo dos “Freedom Riders”, os jovens que, em protesto contra a discriminação racial, percorreram de autocarro o sul da América, clamando contra o facto de os Estados sulistas, com a passividade cúmplice do governo federal, nada fazerem para dar cumprimento às decisões do Supremo Tribunal nos casos Morgan v. Virginia, de 1946, e Boynton v. Virginia, de 1960, e, bem assim, à decisão da Comissão de Comércio Interestadual no caso Sarah Keys v. Carolina Coach Company, de 1955.
Em todas essas decisões considerou-se que era inconstitucional segregar os afro-americanos seja no interior dos autocarros, seja nos respectivos terminais, não sendo admissível existirem lugares reservados a brancos (sempre à frente…) ou dísticos e placas com os dizeres “só para brancos” ou “só para negros”. Tudo isso equivaleu a uma mudança a todos os títulos histórica, correspondente à revogação da doutrina “separados, mas iguais” que o Supremo Tribunal firmara em 1896, no infame caso Plessy v. Ferguson, em que o Tribunal decidiu que a segregação racial, em si mesma, não era inconstitucional, desde que brancos e negros tivessem direito ao mesmo tipo de serviços (escolas, transportes, casas-de-banho públicas, etc.), os quais, todavia, poderiam ser segregados… No pós-guerra, e em especial na decisão mais marcante de todas, tomada no célebre caso Brown v. Board of Education, de 1954, o Supremo inverteu a posição tomada em 1896, concluindo o óbvio: a simples e a mera separação entre negros e brancos, mesmo que a uns e outros fossem concedidos serviços idênticos, violava o princípio da igualdade e a proibição de discriminação. Mas, se os tribunais assim o decidiram, o mesmo não ocorreu com as autoridades políticas e administrativas de muitos Estados, que continuaram a fechar os olhos à segregação persistente em diversos lugares, sobretudo nos transportes interestaduais.
Para denunciar este imobilismo, o Congresso para a Igualdade Racial (CORE) recrutou grupos de voluntários a que chamou “Freedom Riders”, e que apanhavam autocarros interestaduais rumo ao Sul profundo, denunciando as situações de discriminação que encontravam pelo caminho. Tratava-se de um gesto de enorme coragem, moral e sobretudo física, já que os activistas tinham de enfrentar não apenas a fúria racista dos membros do Ku Klux Klan e afins como a violência dos xerifes e das polícias locais (em Birmingham, no Alabama, os ataques contra os “Freedom Riders” foram organizados pelo próprio comissário da polícia, o famigerado Teophilus “Bull” Connor).
Charles Person, que no liceu se tornara membro da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), uma das maiores organizações de defesa dos direitos civis da América, foi convidado, quando era caloiro no Morehouse College, a integrar o primeiro autocarro de “Freedom Riders”. Nem hesitou; mas, como era menor, necessitou da autorização do seu pai, que lha deu muito a custo, sabendo que, com esse gesto, podia estar a assinar a sentença de morte.
Assim - e após seis meses de treino em técnicas de autodefesa e de não-violência -, doze jovens, seis negros e seis brancos, apanharam, no dia 4 de Maio de 1961, dois autocarros Greyhound em direcção aos Estados sulistas. A Charles Person cabia a missão de, em conjunto com um colega branco mais velho, James Peck, testar o racismo nas casas-de-banho públicas: nas paragens do autocarro, Charles entraria nos W.C.’s reservados a brancos, James faria o mesmo nos destinados aos negros. Em Fredericksburg, na Virgínia, não tiveram problemas de maior, excepto alguns resmungos e olhares de soslaio. Já em Charlotte, na Carolina do Norte, Charles esteve na iminência de ser preso no terminal de autocarros por ter tentado engraxar os sapatos na zona reservada aos brancos. O pior seria em Anniston, no Alabama, onde o terminal estava fechado, pois tinha havido motins violentos na véspera e o incêndio de uma viatura. Depois de ordenar, sem sucesso, aos jovens negros que fossem para os bancos de trás, o motorista saiu do autocarro, que foi assaltado de imediato por um bando de jovens do Ku Klux Klan, os quais espancaram violentamente Charles Person e James Peck, deixando-os inconscientes e atirando-os para os bancos traseiros.
Ao chegarem a Birmingham, também no Alabama, tinham uma multidão em fúria à sua espera. Vendo a camisola ensanguentada de James, os racistas julgaram que o negro Charles o agredira, mas, ao perceberem que eram amigos, tentaram bater nos dois. Charles conseguiu fugir, James não. Conseguiram, ainda assim, refugiar-se na casa do reverendo Fred Shuttlesworth, uma figura cimeira na luta pelos direitos civis no Alabama, companheiro de Luther King, mas tiveram de aguardar várias horas por auxílio médico, pois diversos clínicos da cidade recusaram-se a tratá-los. A seguir, foram de avião até Nova Orleães, uma vez que nenhum motorista de autocarro quis transportá-los. Dali regressaram a Atlanta, ao fim de uma jornada épica, saldada em triunfo: mais de 400 jovens de ambas as cores aderiram aos “Freedom Riders” e a administração Kennedy acabou por emitir uma ordem federal que, de uma vez por todas, pôs termo à segregação nos autocarros interestaduais e nos seus terminais.
De regresso a casa, e na mira de um emprego certo, Charles Person pensou alistar-se no Exército e acabou nos Marines, a conselho da mãe. Esteve dois anos no Vietname, mas passaria a maior parte da carreira em Guantánamo Bay, reformando-se em 1981. A seguir, abriu uma empresa de electrónica em Atlanta, prestou apoio técnico a muitas escolas da cidade e continuou a envolver-se no combate contra a discriminação e o racismo.
Em 2022, escreveu as suas memórias, Buses are Comin’: Memoirs of a Freedom Rider. Dois anos antes, ao ver os protestos pela morte de George Floyd, ligou uma noite ao seu amigo Pete Conroy, também ele activista. Indignado pela violência dos manifestantes (Pete diria mais tarde que foi a única vez que o viu exaltado na vida), propôs-lhe que fundassem a Freedom Riders Training Academy, especializada nos princípios da não-violência e em formas legais de protesto pacífico.
O ano passado, a cidade de Hoover, no Alabama, foi a primeira a adoptar o programa da Academia criada por Charles Person, aplicando-o a jovens delinquentes primários como alternativa à pena de prisão. Planeado para 2024-2025, o primeiro curso ainda não terminou, mas os resultados provisórios são, para já, francamente animadores: redução da violência e da delinquência juvenis, diminuição do número de processos judiciais, poupança para os contribuintes. Quanto a ele, Charles Person, centelha num mundo de trevas, morreu há dias em Atlanta, diz-se que da mesma forma suave e discreta, um pouco tímida até, como viveu toda a vida.
Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia