Cassius e Craig, uma história de amor

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Nesta lufa-lufa dos dias, de tantas e tão vãs correrias, nem sequer nos demos conta de uma história de amor terminada há pouco, que também tem passado ao lado, imagine-se, dos profissionais especializados na escrita de obituários, que ora falaram de um ora do outro sem fazerem a junção e a conjunção que entre ambos se impõe, já que viveram maritalmente por muitas décadas, quase quatro, morreram os dois velhinhos e no espaço de poucas semanas, como se, no culminar de tantos anos de convívio mútuo e íntimo, o tratador e a fera tenham sido afinal um só, tal qual o Romeu e a Julieta ou o Castelo Branco e a Betty.

Primeiro partiu o bicho, no passado 2 de Novembro, após ter sido reconhecido pelo Guinness dos Recordes, em 2011, como o maior crocodilo em cativeiro do mundo, já que media coisa de 5,48 metros, título que ostentou por breve período, porquanto foi destronado logo no ano seguinte por um sáurio ainda maior, Lolong, com 6,17 metros, que, porém, pouco gozou o título, falecendo em 2013 de causas várias, todas péssimas: pneumonia seguida de paragem cardíaca, infecção fungosa e basto stress. Cassius, em contrapartida, durou bastante mais, e diz-se que faleceu com a bonita idade de 120 primaveras no lombo, pesando este 1300 quilos. Tinha sido capturado em 1984, pois andava a fazer muitas malvadezas (v.g., comer vacas de pasto) e a atacar barcos na foz do Finniss, que é um rio que fica no norte da Austrália, zona de Darwin. Três anos depois, Cassius foi comprado por George Craig, de quem já falaremos, que o levou para Green Island, uma reserva/parque de atracções na Grande Barreira de Coral onde foi bem tratado dos muitos males de que padecia. Na altura da captura, e em resultado das brigas várias em que se vira envolvido, perdera a pata esquerda da frente, uma parte do focinho e 15 centímetros de cauda. Depois, e apesar da provecta idade, não deixou de continuar ao crescer, e entre 1987 e 2010 somou 18 centímetros ao vasto tamanho que já tinha.

Deu-se então o coup de foudre com George Craig, também falecido há dias, após ter nascido em 10 de Julho de 1930, no Peru, mas de pais ingleses, um homem das arábias ou melhor dito das austrálias que passou a infância e a juventude em Londres, na Segunda Guerra (uma bomba de Blitz caiu a poucos metros da sua casa, sem ter explodido), pensou a seguir alistar-se na Legião Francesa, escondeu-se depois num navio-tanque rumo à Jamaica, onde andou na apanha da banana, após o que regressou à capital britânica, aí contracenando em shows aquáticos com Johnny Weissmuller/Tarzan, o que lhe permitiu amealhar as 47 libras do bilhete para a Austrália, país onde começou por detonar explosivos para a Força Aérea, optando a seguir por uma profissão mais pacata, a de caçador de crocodilos. Isto com uma espingarda .303 que comprou em Adelaide e com a qual começou a matar bichos em 1951, primeiro no Norte da Austrália e depois na Papua Nova Guiné, terra onde residiu entre 1959 e 1971 e onde, numa ocasião aziaga, escapou por um triz de uma tribo de caçadores de cabeças, muito diferentes dos que hoje varrem o LinkedIn em busca dos melhores cérebros.

Aos poucos, George percebeu que, em vez de andar a matar animais, era melhor pô-los a render em cativeiro, pelo que decidiu fixar-se com a família e três monstros (o Gomek, o Oscar e a Angea), além de 30 outros crocodilos mais jovens, numa ilha perto de Queensland, perto de Melbourne, a Green Island. Aí criou um zoo denominado Marineland Melanesia, cujos lucros dispararam em 1986 com o sucesso do filme Crocodile Dundee.

No ano seguinte, Craig comprou Cassius e levou-o para casa, iniciando-se então uma conjugalidade de 37 anos que, como todas, não foi isenta de altos nem baixos, mas que conheceu momentos assaz bonitos, dignos de registo. Como os maridos extremosos, George nunca se esquecia do dia dos anos de Cassius, festejados sempre com o mesmo presente, um bando de galinhas vivas que o aniversariante devorava num piscar de olhos. A ligação entre ambos era “absolutamente estranha”, garantiu um especialista em crocodilos. A nós, que não somos especialistas em crocodilos nem em coisa nenhuma, quer-nos parecer, visto à distância, que foi o bicho quem mais investiu e deu de si àquela relação transgénero, um pertencendo ao Crocodylus porosus, o outro ao Homo sapiens. Todas as manhãs, Cassius saía de água e ficava em pulgas sempre que George se aproximava, enquanto este, deveras ingrato, não se evitava de dizer aos jornalistas que nada sentia por ele (“never felt for a crocodile”), mais acrescentando que, se não nos precatássemos, Cassius comer-nos-ia num ápice, ademais em sentido literal e não figurado, como agora é moda. “Não se deixem enganar por eles”, aconselhou Craig a todos quantos sintam borboletas na barriga à vista de um crocodilo-de-água-salgada.

Nos últimos tempos, por razões de saúde e de idade, George Craig teve de abandonar o parque, acabando o ritual diário das refeições matinais e das brincadeiras a dois metros de distância com um varapau, não fosse o diabo tecê-los. O bicho ressentiu-se imenso, asseveraram os tratadores do parque. Deixou de comer, coitadito, e, de coração partido, partiu em Novembro passado. Revelaram as autópsias que morreu de velho, sem doenças detectáveis, a prova provada de que os médicos legistas nada percebem de sentimentos. Agora, irão analisar os anéis do seu osso do fémur, os quais, tal como nas árvores, permitirão determinar a idade que tinha, tendo sido também retiradas amostras de cada um dos seus órgãos principais e sendo ainda conservadas a pele e a cabeça, pois Cassius era de facto uma alimária extraordinária, muito aparentada ao pré-histórico. Quinze dias volvidos sobre o seu passamento, foi a vez de George, 94 anos, o qual, tendo enviuvado de uma Shirley em 2022, por cá deixa duas filhas e um rapaz, decerto já homem feito. Há também notícia de pelo menos um neto, parvo de todo, que à imprensa tem feito confidências escusadas sobre as intimidades do avô com o seu crocodilo. A tal propósito, e neste ensejo, o máximo que oferece dizer-se é que, pese a diferença de sangues, um quente e o outro frio, souberam entender-se às maravilhas, coisa que nem sempre acontece connosco, que nos gabamos de humanos.

*Historiador

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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