"Justiça" à portuguesa

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Tony Finn, eletricista durante 24 anos numa empresa inglesa foi despedido em maio de 2021, após uma discussão com o seu supervisor, durante a qual este último lhe chamou de “c… careca” (“bald cunt”). A reação judicial britânica foi vigorosa. O tribunal inglês considerou o termo “careca” uma expressão destinada claramente a ameaçar, injuriar, humilhar e criar um ambiente hostil, configurando, surpreendentemente, um caso de assédio sexual. Esta qualificação decorreu da interpretação segundo a qual o termo “careca”, sendo mais frequentemente associado aos homens devido à alopecia, seria equiparável a um comentário inadequado sobre o corpo feminino. A peculiaridade adicional do caso reside no facto de os três juízes envolvidos serem também calvos, determinando a condenação da empresa ao pagamento de uma indemnização ao trabalhador.

Em completo contraste, a Justiça portuguesa tem uma jurisprudência genericamente marcada por uma severa indulgência quanto à gravidade de comportamentos agressivos e injuriosos em contexto laboral. Exemplo disso é uma recente decisão de um tribunal nacional, que absolveu um sócio de uma empresa após este ter ameaçado um trabalhador, erguendo os braços e cerrando os punhos, chamando-o de “filho da p...” e exigindo-lhe imperativamente que abandonasse o local. Apesar da atitude violenta e do uso claro de expressões injuriosas, o tribunal português desvalorizou a situação, classificando-a como um comportamento “socialmente inadequado” e “eventualmente ilícito” em contextos não-penais, como o laboral ou societário, mas insuficiente para configurar coação ou injúria puníveis criminalmente. Surpreendentemente, considerou-se que as expressões utilizadas seriam um mero “desabafo”, destituído de intenção injuriosa e que os gestos ameaçadores não produziram constrangimento suficiente sobre o trabalhador. A consequência prática foi a absolvição do sócio quanto aos crimes de coação tentada, injúria e difamação e a negação da indemnização ao estagiário, destinada ao IPO.

Este contraste revela, de forma inequívoca, uma diferença substancial entre os padrões de proteção em contexto laboral da dignidade pessoal aplicados pelos tribunais britânicos e portugueses. Enquanto no Reino Unido até expressões aparentemente menos graves são consideradas ofensivas ao ponto de configurarem assédio sexual, em Portugal atitudes manifestamente agressivas e injuriosas são frequentemente minimizadas como meros incidentes irrelevantes para a Justiça Penal. Tal cenário levanta a questão sobre o nível efetivo de proteção conferido pela Justiça portuguesa aos trabalhadores e subordinados hierárquicos, sugerindo implicitamente que o recurso aos tribunais pode ser mais desencorajador do que protetor para quem enfrenta situações laborais gravosas. Fica à reflexão pública a discussão sobre a posição da jurisprudência nacional neste domínio, designadamente, se a mesma reflete a consciência social dominante.

Advogado e sócio fundador da ATMJ - Sociedade de Advogados

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