Justiça e tempo
Não existem soluções simples para problemas complexos. Aqueles que afirmam conhecer uma solução simples para um problema complexo propõem habitualmente uma solução inviável, ou que não funciona, ou que agrava o problema. Ou são ignorantes, ou pouco inteligentes, ou populistas. Desconfio sempre de quem, enfrentando um problema complexo, começa por dizer “a solução é muito simples”. Nunca é - e se o fosse já alguém a teria encontrado.
É o que se passa com a relação da justiça - entenda-se, da atividade judicial - com o tempo. Hoje em dia, a referência crítica à morosidade da justiça tornou-se um hábito.
Não me interessa especialmente apurar se se trata de um facto estatisticamente comprovável ou de uma perceção. Ainda que fosse apenas uma perceção, mereceria a nossa atenção, suscetível como é de afetar negativamente a imagem da justiça.
Provavelmente, a maioria dos processos judiciais corre dentro de prazos razoáveis; como a maioria dos estudantes frequenta escolas que funcionam normalmente; tal como a maioria daqueles que recorrem aos hospitais são rápida e eficientemente tratados.
Ainda que esta possa ser a realidade, todos conhecemos casos de estudantes que há vários meses não têm professores de uma ou duas das disciplinas que deveriam frequentar. E de pacientes que esperaram longas horas por uma consulta ou muitos meses por uma cirurgia. Mesmo que estas situações sejam pontuais, elas não podem deixar de nos preocupar, pois corroem a imagem do Estado social de direito, que todos, acredito, procuramos preservar.
O mesmo sucede com os tribunais. Esperar 10, 15 ou 20 anos pela decisão de um processo judicial, ainda que se possa tratar de uma situação pouco frequente, é uma situação que ocorre. E não deveria ocorrer. Nunca. Note-se que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado como princípio orientador que a duração aceitável ou razoável de um processo judicial não deve exceder três anos na 1.ª instância ou quatro anos se tiver sido interposto recurso.
Vale a pena indagar das raízes do nosso problema.
Porque pode demorar tanto tempo a resolução judicial de um litígio?
Por vezes, a explicação está na complexidade do litígio: tem por objeto um contrato de concessão de uma autoestrada no valor de muitos milhões de euros, por exemplo. Ou se trata de um megaprocesso penal, daqueles que ocupam terabytes de informação digitalizada (e que, com melhor gestão processual, poderiam ser evitados, visto que resultam de decisões de junção de processos). Milhares de documentos a analisar, centenas de testemunhas a ouvir, perícias complicadas.
Mas estes casos não são representativos. O comum dos processos judiciais não apresenta demasiada complexidade. E estes também se podem arrastar.
O processo judicial apresenta um nível de formalização acentuada: há diligências que é preciso fazer, documentos que têm de ser apresentados e analisados, pessoas que têm de intervir. E não de qualquer forma: tudo isto se encontra submetido a regras específicas, mais ou menos complexas, acrescendo que deve ocorrer segundo uma ordem predeterminada na lei.
Qualquer processo judicial tem no seu âmago um conflito de interesses, cuja resolução, inevitavelmente, protege um destes interesses e sacrifica outro. Quem antecipa uma decisão contrária aos seus interesses não se empenha numa solução lesta. Procura mesmo atrasá-la, recorrendo, quantas vezes abusivamente, a instrumentos próprios do sistema judicial, como as reclamações e os recursos para outros tribunais.
É por esta razão que muitos críticos da morosidade judicial se queixam daquilo que designam por “excesso de garantismo”, ou seja, de medidas destinadas a defender um dos interesses em conflito. Se fossem eliminadas ou atenuadas estas, teríamos, dizem, uma decisão mais célere.
É bem possível que tal sucedesse. Mas também é provável que viéssemos a obter uma pior decisão do tribunal.
Convém não esquecer a motivação de quem toma a iniciativa de instar um tribunal: pretende obter, para o litígio em que está envolvido, uma solução rápida e uma boa decisão - entenda-se, que lhe seja favorável. Só assim considerará que se (lhe) fez justiça.
Claro que nenhum sistema judicial do mundo conseguirá que todos os cidadãos litigantes obtenham uma decisão judicial que lhes seja conveniente. Mas pode e deve ser garantida a todos uma decisão em prazo útil.
Este problema agrava-se no processo penal, por força da relevância dos interesses em jogo, em extremo a liberdade individual. Aqui, não só importa obter uma decisão judicial rápida como é crucial que os atos praticados no decurso do processo suscetíveis de afetar a liberdade dos cidadãos estejam submetidos a prazos o mais curtos possível e, evidentemente, que tais prazos sejam rigorosamente respeitados pelos envolvidos. Veja-se, a título de exemplo, o que ocorre com o prazo em que um detido deve ser apresentado ao juiz: 48 horas. O incumprimento deste prazo é frequente, havendo quem tenha estado detido mais de duas semanas antes de tal apresentação.
O que é que sucede quando um cidadão envolvido num litígio, através do seu advogado, não cumpre um prazo judicial? Deixando de fora o prazo dilatório - que obsta à prática de um ato antes de certo momento e, por conseguinte, não releva neste ponto -, o que sucede é que o prazo é perentório, significando isso que o ato que deveria ter sido praticado até ao seu termo deixa de o poder ser, com as inerentes consequências desfavoráveis para o cidadão.
Mas existe um terceiro tipo de prazos: o prazo ordenador, também designado meramente ordenador (o uso do advérbio é tudo menos inocente, pois sugere, bem, que o prazo serve para pouco). Este prazo estabelece também um limite temporal para a prática de um ato, mas este continua a poder ser validamente praticado após ultrapassado aquele limite. O problema é que são considerados ordenadores os prazos a cumprir pelo tribunal, pelo Ministério Público - na fase de inquérito - e pela secretaria judicial.
Dito por outras palavras: o desrespeito pelo prazo ordenador não produz quaisquer consequências jurídicas relevantes, a não ser uma vaga hipótese de responsabilização disciplinar - que raramente ocorre. Esta diferença afigura-se-me inaceitável.
O desrespeito do prazo ordenador pode resultar de uma de três causas:
a) Negligência daquele que deveria praticar o ato - juiz, magistrado do Ministério Público ou oficial de justiça;
b) Insuficiência dos recursos humanos ou financeiros do tribunal;
c) Inadequação do quadro normativo aplicável.
No primeiro caso, deverá ser responsabilizado aquele que haja incorrido em negligência; no segundo caso, a responsabilidade será do governo; no terceiro, recairá sobre a Assembleia da República ou o governo [a competência para regular a organização judiciária está reservada à Assembleia, que pode autorizar o governo a fazê-lo, nos termos da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição].
Quem nunca tem culpa nenhuma nunca é o cidadão lesado pelo incumprimento do prazo: paga os seus impostos e tem direito ao funcionamento regular dos tribunais. A única coisa adequada - para não dizer decente - a fazer é alterar a natureza destes prazos, fazendo recair consequências jurídicas sobre quem for responsável pelo seu incumprimento.
Antigo presidente do Tribunal Constitucional e subscritor do Manifesto 50+50 pela reforma da justiça.