José Sócrates vai ter um julgamento justo?
O processo da Operação Marquês, que só ontem começou a ser julgado e que envolve o antigo primeiro-ministro José Sócrates e mais 21 arguidos, tem mais de 12 anos - isso é uma perversão irreparável da Justiça, pois ela, seja qual for a sentença final, que só ocorrerá daqui a muitos anos, depois do trânsito em julgado de todas as decisões, já não poderá ser feita em tempo útil, quer para os envolvidos, quer para a sociedade em geral.
Ao longo de mais de dez anos, Sócrates foi figura de atenção mediática constante: escutas, fugas de informação, reportagens e crónicas moldaram as perceções públicas. Ele esteve, desde novembro de 2014, quase 11 meses em prisão preventiva - isso já ninguém lhe tira do corpo, seja ele culpado ou inocente.
Podem as três juízas que agora o julgam ser imunes a tanto tempo de julgamento e condenação mediática? Viveram estes 12 anos em Marte? Não, claro que não - isso torna difícil acreditar que os seus futuros acórdãos, seja qual for o seu sentido, venham a ser proferidos com base exclusivamente na prova produzida em tribunal e não sejam influenciados por fatores externos.
Quando Sócrates acusa os media e o sistema judicial de formarem uma “aliança perversa” contra ele tem, lamentavelmente, razão.
Houve pouca e deficiente análise crítica nos media aos erros do Ministério Público, à razoabilidade das suspeitas sobre os arguidos. Houve bom e corajoso jornalismo para escrutinar Sócrates; houve quase total ausência de jornalismo para escrutinar o Ministério Público e os tribunais.
Por exemplo: todos criticam o excesso de recursos e expedientes que Sócrates usou para adiar o julgamento. Correto, parecem-me críticas razoáveis, apesar de ele ter direito a usar esses expedientes.
Mas eu lembro-me de que o então diretor do DCIAP, o atual Procurador-Geral da República, Amadeu Guerra (que agora devia estar caladinho e deixar o tribunal sossegado), determinou, a 30 de março de 2016, que a investigação tinha de terminar no dia 15 de setembro de 2016.
Depois, essa data foi adiada para 17 de março de 2017.
Depois, foi dito que, afinal, não havia prazo definido - era só “indicativo”.
Depois inventou-se outro prazo: seriam três meses depois do recebida a última resposta às cartas rogatórias enviadas a autoridades estrangeiras.
Pelo meio, foram-se agregando mais e mais inquéritos a este processo, que o tornaram cada vez mais complicado, opaco e contraditório.
Finalmente, a 11 de outubro de 2017, lá saiu a mega-acusação, suficientemente pífia para um juiz de instrução, Ivo Rosa, poder decidir anular 172 crimes dos 189 propostos, obrigando o Ministério Público, para salvar a pele, a avançar com recursos que só seriam resolvidos a seu favor, no essencial, pelo Tribunal da Relação mais de sete anos depois, a 25 de janeiro de 2024.
Há 650 testemunhas e montanhas de provas documentais para analisar neste julgamento, o que permitirá à acusação e à defesa apresentarem as suas teses em tribunal - isso é bom.
Mesmo assim, com as perversidades antecedentes e com a ideia prevalecente de que condenar Sócrates é salvar a reputação da Justiça, eu, tal como os outros, influenciado pelo que li, ouvi e trabalhei nestes 12 anos, tenho duas convicções: Sócrates não me parece nada ser uma vítima inocente, mas, infelizmente, dificilmente o seu julgamento será justo.
Jornalista