Jiang Zemin (1926-2022) - The last man smiling

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O luto não é um processo simples, a 9 mil 668 quilómetros de onde este jornal foi impresso esta madrugada. Na China, a partida de antigos líderes - o seu impacto na memória coletiva do país - é feita de cuidados e complexidades que ultrapassam a gestão política. A remoção de Hu Jintao do último Congresso do Partido Comunista Chinês este ano, onde Xi Jinping recebeu um inédito terceiro mandato desde que a sua limitação é regra, foi um exemplo do peso simbólico que caracteriza o conjunto de homens que conduziram a República Popular da China nos seus 73 anos de existência.

Se procurarmos um exemplo mais antigo, drástico e significativo, cruzamo-nos irremediavelmente com a morte de Hu Yaobang, em 1989. Secretário-geral de Deng Xiaoping e arquiteto das reformas que abriram a China aos mercados no seu tempo, a memória de Hu foi largamente hostilizada pelos anciãos do partido, apesar do luto popular que a sua partida provocou. O Massacre de Tiananmen ocorreu na véspera do seu funeral e tal não se tratou de uma coincidência. A sua biografia seria censurada durante as duas décadas que se seguiram e o seu legado apenas reabilitado no início deste século.

Ontem, com o anúncio do falecimento de Jiang Zemin no mês em que protestos contra as políticas covid-zero irrompem pelo país, os paralelos entre um e outro proliferaram entre aqueles que acompanham a realidade chinesa. Zemin, nascido na China ocupada pelo Japão em 1926, seria o sucessor de Deng precisamente após Tiananmen, chefiando a China durante a próspera década de 90 do século passado. Formado em Engenharia Eletrotécnica, juntar-se-ia ao partido na faculdade e iniciaria a sua vida política enquanto autarca de Xangai, onde pereceu esta semana.

Zemin, que instituiu a limitação de mandatos agora quebrada por Xi, era um improvável caso de sucesso enquanto figura de poder, na medida em que a sua ascensão à liderança foi erradamente antevista como temporária e transitória. Oriundo da indústria automóvel e de geladaria, a sua chegada a ministro já causara surpresa. O seu estilo jovial, adepto de música e poesia, tornavam-no um corpo estranho para encabeçar o país mais populoso do planeta. Seria o primeiro presidente da China sem uma carreira militar.

No regresso de uma visita aos Estados Unidos da América, em 1993, utilizaria o microfone das hospedeiras para cantar para todo o avião. Segundo relatos do Financial Times, Zemin interpretaria O Sole Mio num banquete em Pequim, cujo convidado de honra era nada mais, nada menos do que George Bush. De acordo com o diário britânico, o então presidente chinês dançaria com a primeira-dama americana diante de todo o Estado-maior do Partido Comunista - uma visão, aos dias de hoje, comicamente inverosímil.

Numa entrevista ao jornalista Mike Wallace, no programa 60 Minutos, citaria de cor o discurso mais célebre da história dos Estados Unidos - Lincoln em Gettysburg, na guerra civil -, admitindo tê-lo utilizado para aprender inglês e dar aulas aos seus alunos na China. "A ideia de que "todos os homens nascem iguais" teve uma grande influência nos estudantes da minha geração. O que Lincoln escreveu continua a ser o objetivo dos atuais líderes americanos, especialmente a última parte. Um governo do povo, com o povo, para o povo", afirmaria Zemin, há 22 anos, sobre a sua superpotência rival, noutro momento indiscutivelmente irrepetível nos nossos dias.

"Eu também sou eleito, mas por um sistema eleitoral diferente. Cada país tem o seu, com culturas e tradições diferentes, com níveis de educação e desenvolvimento económico diferentes", justificaria na mesma conversa com Wallace, que evocaria mais tarde para repreender repórteres de Hong Kong.

O seu desaparecimento, acompanhado pela nostalgia da sua boa-disposição, não deixa de representar uma involuntária afronta a Xi Jinping. Quase como se ele, o último homem sorridente, fosse a antítese do que a China de Xi acabou por ser. O ambiente do seu adeus não poderia ser mais parecido com aquele que veio tentar sarar depois de 1989.

Com sorte, a história não se repetirá na praça. Mas na mudança.

Colunista

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