Japão revisitado
"Quem era Moraes? Um homem encantador que ficou preso ao que os chineses chamaram "o país das rainhas", O Japão?... O japonês não se precipita na narração como nós, fazendo literatura sem se preocupar do coração caloroso em que a vida se produz. O passado não é feito de coisas e factos imóveis, mas respira o ar que respiramos."
Agustina Bessa-Luis, Senhor Moraes
DN, Janeiro de 1994
Na história da cultura portuguesa, se o Oriente ocupou, sem dúvida, em graus diversos, um lugar de relevo como tema entre historiadores e escritores, o Japão só nos tempos modernos, ou seja, entre finais do século dezanove e o século vinte é que alvoroçou a imaginação portuguesa.
O final do século dezanove, que marca o início da era Meiji, e o século vinte, que assinala a era de Taisho e Showa, testemunham o reinício de uma actividade literária que teve como protagonistas fundamentais Wenceslau de Moraes, Franco Nogueira e Martins Janeira. O traço comum a estes três protagonistas é o facto de terem conseguido transferir para a literatura, cada um com seu estilo, a experiência ôntica do Japão.
Embora o "japonismo", que é uma criação portuguesa do século dezasseis, reclame a paternidade do autor da Peregrinação, a verdade é que foi com Moraes que o Japão passou a ser divulgado literariamente em Portugal.
Moraes foi sem dúvida a figura que mais contribuiu para alimentar o imaginário português sobre o Japão no início do século vinte a tal ponto que se tornou, na cultura portuguesa, numa referência obrigatória e metáfora indispensável das coisas nipónicas.
A obra de Moraes, não obstante as contradições que contém, justifica plenamente o termo de que a saudade é portuguesa. O Bon Odori em Tokushima e Ó-Yoné e Ko-Haru, pequenas bíblias da saudade morasiana, são, no contexto da sua errática obra, aquelas que melhor ajudam a conhecer o perfil psicológico de Moraes e o seu saudosismo.
Porém, se Portugal reconhece a importância da paternidade de Moraes na divulgação do "japonismo" em Portugal, o Governo japonês, embora postumamente, no sexto aniversário da morte de Moraes, também entendeu distingui-lo pelo seu contributo para a promoção da imagem cultural do Japão no mundo e particularmente para a divulgação da cultura nipónica junto dos emigrantes japoneses da segunda geração no Brasil. Esta geração, nada e criada no Brasil, que não lia os caracteres japoneses, refugiou-se nas obras de Moraes como Dai-Nippon, Relance da alma japonesa, Relance da história do Japão, O Culto do chá e Traços do Extremo Oriente para visualizar a terra e a cultura dos seus progenitores.
A obra de Moraes, independentemente das suas vicissitudes, ainda continua a ser um oásis onde os portugueses podem saciar a sua sede e o sonho do Japão.
A derrota do Japão em 1945, trouxe ao Extremo Oriente Alberto Franco Nogueira como representante de Portugal junto do alto-comando do general MacArthur. Diplomata intelectual de pena apurada, crítico literário e poeta, deixou-nos dois belos textos impressionistas, testemunhos da sua experiência de cinco anos vividos nos "escombros de Tóquio" do pós-guerra: Tóquio e A Luta pelo Extremo Oriente. Tóquio, publicado postumamente, é um relato vivo, realista e impressionista de Tóquio e seus arredores pós-Hiroshima e Nagasaki. Constitui um diário de apontamentos anotados ao longo do ano de 1946, mais precisamente desde 6 de Janeiro até 26 de Dezembro de 1946. Porém, o apontamento do dia 6 de Dezembro de 1946, referente à metamorfose do estatuto do Imperador divino logo após a vitória dos Aliados, é uma análise quase semelhante à da antropóloga Ruth Benedict no seu clássico O Crisântemo e a Espada. O texto A Luta pelo Extremo Oriente é uma análise subtil e estruturada sobre os antecedentes da Segunda Guerra Mundial, as manobras das grandes potências europeias no Oriente em que "profetiza" a Conferência de Bandung ao afirmar que "a aventura japonesa não foi indiferente ao Oriente... e a derrota do Japão foi o início do levantamento da Ásia". O capítulo sobre o Japão oferece-nos uma visão holística da evolução histórico- política do país e do seu futuro.
Armando Martins Janeira, avatar do "eremita de Shikoku", experienciou o Japão em duas fases distintas: a primeira, entre 1952 e 1955; a segunda, entre 1964 e 1971. Se na primeira fase, Martins Janeira tentou interiorizar o Japão, na segunda verbalizou-o literariamente. Romântico compulsivo, a sua vasta obra, tão diversa com a do Moraes, é acima de tudo uma verdadeira hagiografia da gesta dos portugueses no Japão. O mérito absoluto de Martins Janeira foi a sua enorme empatia que contribuiu para a "restauração" da imagem de Portugal no Japão, com a colaboração de figuras como Shunsaku Endo, Yasushi Inoue e Etsuko Takano. Martins Janeira foi o embaixador certo no momento certo no Japão na década de sessenta, pelo seu dinamismo cultural, a sua identificação com a alma japonesa e a sua suave capacidade de persuasão. O impacte português sobre a civilização japonesa e Japanese and Western Literature, dois raros monumentos literários filtrados pela sua visão obcessivamente romântica, permite-nos apreciar e valorizar o passado português no Japão e a sua enorme admiração pela cultura do país que o acolheu durante dez anos.
Recordar estas três figuras titulares no contexto histórico dos 480 anos das comemorações é um apelo para que as novas gerações olhem para as relações luso-nipónicas não por uma visão cristalizada do passado mas como uma realidade dinâmica e actuante em contínua mutação.
Professor universitário