Já cá não está quem falou. Yiannis Boutaris (1942-2024)
Yiannis Boutaris, que faleceu no passado dia 9 de Novembro aos 82 anos de idade, de causas que a família não especificou nem quis especificar, foi herdeiro vinhateiro, alcoólico regenerado, empresário de sucesso, autarca modelo, cidadão humanista e bom pai de família, cumprindo em suma o que dele se esperava nesta sua passagem breve pelo planeta Terra, que procurou deixar melhor do que quando cá chegou – o que ocorrera em Salónica, em 13 de Junho de 1942.
Como amiúde sucede naquelas paragens balcânicas, ou leste-mediterrânicas, todas muito densas de História e de confluências migratórias e civilizacionais, os seus pais tinham origens múltiplas: os Nichota, a família da mãe, grandes produtores de tabaco, possuíam raízes em Kruševo, a cidade mais alta do norte da Macedónia, que em albanês se diz Krushevë, em grego se escreve Κρούσοβo, em romeno é Crușova e em turco tanto pode ser Kruşova como Kuruşova. Em todo o caso, o pequeno Yiannis tê-la-á conhecido como Crushuva, pois assim se chama em arromeno, já que tanto os Nichota como a família do pai, os Boutaris, provinham deste grupo étnico, os arromenos, também apelidados de valáquios, macedo-romenos ou megleno-romenos.
A mãe, Fanny Vlachos, tinha origens na Macedónia do Norte, como vimos, enquanto o pai, Stelios Boutaris, descendia de gente vinda de Vithuk, uma aldeia montanhosa que actualmente pertence à Albânia e que se encontra em declínio, é certo, mas que teve um passado ilustríssimo, patente nos interiores sumptuosos da Igreja de São Miguel Arcanjo, no facto de aí se ter inventando uma variante do alfabeto albanês, o Vithuki, de ter sido o lugar eleito, em 1936, para a construção da primeira hidroeléctrica da Albânia, e de ter sido o berço de um importante núcleo de partisans antifascistas, aliados de Enver Hoxha.
Macei o leitor com esta cópia de pormenores apenas para que este possa compreender, caso queira, que o magistério cívico, político e humanístico de Yiannis Boutaris muito deve ao facto de ele ter percebido, creio eu, que, numa região com tanta confluência de gentes, e de gentes de tão diferentes credos e etnias, o melhor é que essas gentes se entendam, na paz e na tolerância, em vez de andarem sempre conflituar-se e a matar-se uns aos outros, como tem sido a norma por lá, infelizmente.
De uma família com posses, Yiannis estudou num prestigiado e muito antigo colégio privado de Salónica, formando-se depois em química na Universidade Aristóteles de Salónica, e em enologia, em 1967, no Instituto do Vinho de Atenas. Na juventude, namoriscou o KKE, o Partido Comunista da Grécia, mas depois deixou-se disso, preferindo afirmar-se como o independente que sempre foi. Entre 1967 e 1996, trabalhou na companhia de vinhos do pai, em Naousa, de onde saiu para fundar a sua própria e bem-sucedida empresa, a Kir-Yianni. De permeio, afundou-se no alcoolismo, o que lhe custou o casamento com Athena, com quem namorava desde os tempos do liceu; mas conseguiria vencer o vício, reconciliou-se com ela e estiveram juntos até Athena falecer, em 2007. Segundo consta, além de ter criado um centro de reabilitação para alcoólicos na ilha de Skiathos, Yiannis empregou na sua empresa muitos ex-alcoólicos que conhecera nas clínicas por onde passara.
Nas autárquicas de 2006, candidatou-se como independente à presidência da câmara municipal de Salónica, ficando em terceiro lugar. Quatro anos depois, e novamente como independente, venceu à tangente as eleições para a chefia da cidade, que durante décadas fora dominada conservadores da linha dura. Logo no primeiro mandato, foi eleito “o melhor edil do mundo” pela City Mayors Foundation, do Reino Unido, e tornou-se uma das figuras mais proeminentes das causas progressistas na Grécia, quer no domínio da ecologia, quer na defesa dos grupos LGBT e do casamento homossexual, quer na apologia da legalização da canábis. Em 1992, após ter visto um urso vilmente acorrentado a dançar nas ruas de Salónica, decidiu criar a Arcturos, uma organização não-lucrativa de protecção dos ursos, dos lobos e de outros animais selvagens, bem como dos seus habitats, o que lhe valeu ser escolhido pela revista Time, em 2003, como “Green Team Hero”.
Foi, porém, como promotor da convivência entre gregos, turcos e judeus que o seu nome mais se destacou, por vezes através de declarações polémicas, que justificou em nome de uma dupla necessidade: desde logo, de concórdia e harmonia; e, depois, como forma de atracção de turistas turcos à terra natal de Kemal Atatürk, que aí vira a luz circa 1881. Numa urbe dilacerada por séculos de conflitos e de intolerâncias, que o historiador Mark Mazower brilhantementee descreve em Salonica. City of Ghosts (2016), Boutaris tanto defendeu a edificação de uma mesquita como de vários monumentos em memória dos judeus de Salónica, sendo ainda um dos promotores da construção de um museu do Holocausto. Noutra ocasião, causou escândalo ao convidar o primeiro-ministro da Macedónia, Zoran Zaev, para jantar no Ano Novo, gesto que acabaria por abrir caminho ao histórico acordo que, ao fim de décadas de um confronto estúpido, pôs termo à disputa onomástica entre a Grécia e aquela ex-república da Jugoslávia, e que se saldou na adopção do nome “Macedónia do Norte”.
Se a sua postura conciliadora lhe valeu o respeito de muçulmanos e de turcos étnicos, de macedónios e de israelitas e judeus de todo o mundo, não o poupou aos ataques das forças mais conservadoras e nacionalistas, como o metropolita da cidade, Anthimos, que em 2010 activamente fez campanha contra ele – e decerto contra o seu brinco na orelha e as tatuagens no corpo –, chegando a dizer no púlpito que, sem o seu apoio, Yiannis Boutaris jamais seria eleito para a presidência da câmara de Salónica (enganou-se: 90 dias depois, o visado averbou a vitória).
Mais tarde, em 2018, esteve hospitalizado vários dias, após ter sido violentamente agredido por um bando de jovens ultra-nacionalistas, um dos quais polícia. No ano seguinte, em 2019, já não se candidatou às eleições para a câmara de Salónica, vencidas por ampla margem por Konstantinos Zervas, do partido liberal-conservador Nova Democracia, que em pouco tempo desfez o legado do seu antecessor.
Tendo enviuvado de Athena em 2007, Yiannis Boutaris tinha três filhos e seis netos, que comunicaram à imprensa o falecimento do seu querido pai e avô. Escreveu memórias e, em 2023, conseguiu ser eleito para o conselho municipal da cidade, mandato que praticamente acabou por não exercer devido a várias complicações de saúde. Agora, políticos de todos o espectro partidário grego lamentam a sua morte e enaltecem o seu incoformismo e o seu exemplo, que todavia persistem em não seguir, o que é deveras pena, deles e nossa.
Para a minha amiga Rita Nunes