Já cá não está quem falou. Simon Fieschi (1983-2024)
Foi já aberto um inquérito, inclusive com autópsia, ao estranho falecimento de Simon Fieschi, encontrado morto num hotel de Paris no passado dia 17 de Outubro em circunstâncias que se ignoram, mas que se adivinham.
Tinha 41 anos de uma existência cortada ao meio, e à bala, pela Kalashnikov de Chérif Kouachi, um dos dois irmãos islamitas que, no dia 7 de Janeiro de 2015, pelas 11h30, hora local, irromperam aos tiros na redacção do Charlie Hebdo, fazendo 12 mortos e 11 feridos, cinco deles em estado grave, um dos quais Fieschi.
Nos jornais franceses e nas homenagens da praxe, vindas de personalidades como Emmanuel Macron ou François Hollande, definem-no como a última das vítimas mortais daquele abominável massacre. A sua morte, porém, foi pior do que as outras todas, por ter sido lenta de muitos anos e sempre horrivelmente sofrida ao minuto, ao segundo, nas cicatrizes do corpo e sobretudo do espírito. Num texto arrepiante que publicou no Charlie em 21 de Outubro de 2020, Simon contou como foi sair do coma em que os médicos de Salpêtrière o colocaram logo a seguir ao atentado. Disse que acordou “num sarcófago”, sem conseguir mexer-se ou falar, e que a sua mãe lhe descreveu então o que sucedera, o nome dos mortos e dos feridos, a manifestação gigantesca em Paris, com mais de dois milhões de pessoas na rua ao som dos sinos da Notre-Dame. Afirmou que não tinha dor, mas dores, no plural, tão variadas elas eram em número e em natureza, na intensidade e na duração. “Descobri a sensação de um osso partido, da carne ferida, de um nervo gritando”, com sensações recorrentes de queimaduras, de choques eléctricos, de agulhas inseridas sob as unhas.
Durante a convalescença convenceu-se de que exalava um odor nauseabundo e que ninguém se aproximava dele sem desmaiar ou sem vomitar; noutras ocasiões, acreditou ser uma cobaia que mantinham viva para experiências médicas atrozes. Como num filme de terror, enfrentou criaturas peludas, mutiladas, viu crimes bizarros a serem cometidos em desenhos animados ou jogos de vídeo, entre alucinações mais radiosas, como a de um espectáculo dos Pink Floyd e outro de James Brown a actuar só para ele numa plateia vazia. A dado passo, acreditou que um estagiário do hospital o ligara à internet através do tubo nasal com que era alimentado e assim manteve infindáveis conversas pela noite dentro sobre história e filosofia, sobre finanças, mulheres, até perceber que tudo não passava de uma ilusão. Em vários momentos sentiu a iminência da morte e viu desfilar diante de si os seus antepassados, piratas de Saint-Malo, judeus polacos e corsos taciturnos que o amaldiçoavam por, ao não ter tido filhos, ir acabar com aquela linhagem. “Não transmitiste os teus genes, a tua existência foi em vão”, pensou vezes sem conta, na solidão de si mesmo.
Quando finalmente pôde comunicar e a companheira o visitou no hospital, disse-lhe que arranjasse outro homem, tentando libertá-la daquele fardo imenso, um cadáver adiado. Ela recusou com a mesma coragem que animou Simon nos piores momentos, aqueles em que cerrava os dentes e repetia incessantemente apenas duas frases, só duas: “Eles não me apanharam”, “não quero que eles ganhem.” Em 2020, no tribunal, fez questão de se levantar da cadeira para testemunhar contra os cúmplices dos assassinos, que fixou olhos nos olhos, e ainda há pouco depusera contra Peter Cherif, o jihadista mentor dos Kouachi, condenado a perpétua.
Em jovem, Simon Fieschi sonhara ser polícia, em revolta contra um pai comunista e soixante-huitard, e chegou a escrever um livro sobre os gendarmes da Córsega nos anos 20. Formado em Ciências Humanas, dizia ter feito “muitas coisas estranhas antes de entrar no Charlie”: trabalhou no Instituto da História do Alumínio, entre 2008 e 2011, depois na Fondation Sciences Citoyennes, na startup Likfluence e no Centre Roland-Mousnier.
Em 2012, ingressou no Charlie Hebdo como webmaster e community manager, e aí era extremamente popular, tendo sido eleito várias vezes como representante dos seus trabalhadores. No dia do atentado, foi o primeiro a ser alvejado: a bala atingiu-o no pescoço, perfurou o pulmão, atravessou a espinal medula, estilhaçando-a, e saiu pela omoplata esquerda. Colocado em coma durante uma semana, esteve hospitalizado nove meses nos Invalides, perdeu sete centímetros de altura e os movimentos dos braços e das pernas, que conseguiria recuperar com o auxílio de muletas e um tremendo esforço de fisioterapia. Nada disso o pouparia a depressões recorrentes, entre outros sintomas de stresse pós-traumático.
Com uma incapacidade de 80%, Simon Fieschi vivia em Paris com uma pensão do Estado francês por “acidente de trabalho”. Tinha dois gatos, Dupond e Dupont, e era fã de Keith Jarrett, Gaston Lagaffe e Cioran. Em cerimónia celebrada na mairie do 11.º bairro por Anne-Hidalgo, casara-se com a companheira que não o abandonou no hospital, Maisie, uma australiana de Sidney, filha da escritora Ursula Dubosarsky, que, após ter cursado Letras, é hoje funcionária da Biblioteca Americana de Paris. Tinham uma filha de cinco anos, agora órfã de pai.