Já cá não está quem falou. Kazuo Umezu (1936-2024)
Consultado o Ciberdúvidas, concluiu-se que os linguistas portugueses ainda não chegaram a conclusões definitivas sobre se deve escrever-se manga ou mangá para rotular as populares histórias aos quadradinhos do Japão e, já agora, também não se entendem sobre a que género elas pertencem, se ao masculino, se ao feminino, ou seja, se é o manga ou a manga, ou mangá (para complicar as coisas, há igualmente quem prefira falar em histórias de quadrinhos em vez de histórias aos quadradinhos).
Tudo isto para evocar, claro está, um dos maiores mestres dessa ciência ou arte, cujo falecimento, ocorrido no passado dia 28 de Outubro, só há pouco foi noticiado. Como já adivinharam, falamos de Kazuo Umezu, apelidado de “o deus do mangá de terror”, pois foi nesse subgénero mais horripilante que se especializou e aí obteve sucessos tremendos, de arrepiar. No Japão, onde nasceu e morreu, era de facto endeusado, omnipresente nos media, e todos o conheciam pela sua imagem de marca – camisolas de marinheiro, listradas de rubro e branco – e por fazer um aceno característico com os dedos das mãos, “Gwash”, com o indicador retraído e todos os demais em riste.
A par dessas palermices, concebeu obras celebérrimas, inspiradas no folclore e em histórias tradicionais nipónicas, como Hebi Onna (“Mulher Serpente”, publicada em inglês como “Reptilia”), uma trilogia de manga shōjo (= manga para raparigas e jovens adultas) cujo enredo envolve uma miúda chamada Yumiko que vai visitar a mãe ao hospital, estando aí também internada, coitadita, uma mulher-cobra terrível que, sem se perceber porquê, toma o lugar da mãe da Yumiko, mas esta descobre a trapaça e deslinda a tramóia, a mulher-cobra foge, acaba apanhada e volta a ser institucionalizada. No segundo tomo da trilogia, a mulher-cobra foge novamente do hospital para ir atormentar outra vez a pobre da Yumiko, que estava a passar férias com a prima Kyoko nas montanhas da província de Nagano – entre outras malvadezas, a mulher-cobra transforma toda a família Kyoko em cobras, mas no final a Yumiko consegue desfazer o feitiço, os Kyoko regressam ao humano e a mulher-cobra é derrotada. A última parte da trilogia constitui uma prequela das duas primeiras séries, e é assim sumariada pela Wikipédia: “Em 1907, um homem encontra uma mulher-cobra num pântano enquanto caça. Ele foge após atirar no olho da mulher-cobra, mas fica maníaco e morre logo depois. Décadas depois, a mulher-cobra busca vingança contra a neta do caçador, Yoko, matando a tia cuidadora de Yoko, adoptando a menina recém-órfã e transformando Yoko numa menina-cobra, alimentando-a com uma das suas escamas. A transformação é testemunhada pela melhor amiga de Yoko, Satsuki; eles perseguem Satsuki, mas Yoko volta-se contra a sua mãe e ambos são levados pela enchente de uma chuva forte. A história termina no hospital da primeira série da trilogia, onde os médicos discutem o estado de uma paciente internada que foi recuperada de um rio vinte anos antes e que acredita ser uma cobra.”
Confusos? Perturbados? Atordoados com tanta patetada? Pois ficai sabendo que a mangá é um mercado que movimenta biliões à escala global, que os adolescentes franceses gastam 70% do valor do cheque-cultura que o governo lhes dá na compra de histórias de mangá, que esta já destronou, mesmo nos países europeus mais esclarecidos, a banda desenhada franco-belga e, na América, tem tido aumentos de vendas da ordem dos 500% (durante a Covid-19) ou de 160% (entre 2020 e 2021), dizendo-se que já ultrapassou ou está prestes a ultrapassar os comics. À semelhança da K-Pop coreana, a mangá deixou há muito de ser um exotismo asiático só consumido a Oriente para se tornar uma das mais poderosas forças e indústrias culturais do século XXI, mormente entre a mocidade. É bom que saibam.
No olho deste furacão, Kazuo Umezu, ou Umezz. Nasceu em 3 de Setembro de 1936, em Koya, mas foi criado na cidade montanhosa de Gojō, prefeitura de Nara. Pressentindo-lhe o talento inato, a mãe incentivou-o a tornar-se desenhador, mas foi o pai, ao contar-lhe às noites, para o adormecer (!), lendas tradicionais sobre fantasmas e mulheres-cobra, que acabou por orientá-lo para os caminhos do horror. Em 1955, com 18 anos, publicou a primeira história, baseada no conto de Hansel e Gretel. Teve depois uma passagem pelo estilo gekigados anos 60 e 70, mais vocacionado para um público adulto e para o mercado de aluguer de livros e revistas (kashi-hon), mas fixar-se-ia nas histórias para as adolescentes, a mangá shōjo, sem descurar, porém, o segmento dos rapazes, a Shōnen manga, mais agreste. Averbando sucessos atrás de sucessos, com vendas de milhões, chegou a trabalhar em cinco obras diferentes ao mesmo tempo e, mais tarde, aliaria com êxito o horror ao cómico. Em 1975, iniciou em paralelo uma carreira musical, com um disco de canções inspiradas nas suas histórias de horror. Dedicou-se também à pintura, mas uma tendinite traiçoeira, contraída em 1995, obrigou-o a abrandar nas artes plásticas e a enveredar pelo cinema, onde rubricou vários filmes, de anime e não só, todos apavorantes (e pavorosos).
Em Julho passado, teve um colapso em casa, diagnosticaram-lhe um cancro no estômago, mas foi decidido que não seria operado. Faleceu no dia 28 de Outubro, teve um funeral privadíssimo e a sua morte só foi anunciada há pouco. Criador infatigável, até no leito de morte estava a trabalhar em novos projectos de histórias, decerto terríveis. Deixa uma escola muito sólida no subgénero que cultivou e milhões de fãs desolados em todo o mundo, que como vedes está louco.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.