Já cá não está quem falou. Hugh Cholmondeley (1934-2024)

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O 5.º barão Delamere, que era filho do 4.º, neto do 3.º e pai do 6.º, morreu há dias no Quénia, onde viveu até aos 90 anos, e pelos vistos muitíssimo bem, pois morava no Rancho Soysambu, que é só uma propriedade de 190 quilómetros quadrados com tanta vida selvagem que, desde 2007, constitui uma reserva natural aberta ao público turista. Compreende-se: à família Delamere, também conhecida por “os Kennedy do Quénia”, já lhes custava uma fortuna alimentar aquela bicharada toda, que era muita, e a saber: resmas de pelicanos que ali nidificam, mais de 50 espécies de mamíferos, onze girafas Rothschild para lá transferidas e uma família inteira de macacos colobo (ou colobo-guereza), cujo habitat original estava em risco de destruição, à semelhança do nosso. Isto sem contarmos com os visitantes humanos, alguns deles ilustres, como Winston Churchill, Evelyn Waugh, Jomo Kennyatta, o príncipe Aga Khan e a equipa de filmagens de Tomb Raider 3, que foi lá rodado, nas margens de um lago lindo.

Hugh George Cholmondeley, o falecido desta semana, nasceu Londres, em Kensington, aos 18 de Janeiro de 1934, sendo o primogénito de Thomas Pitt Hamilton Cholmondeley, 4.º barão Delamere, e de Phyllis Anne Scott, neta do 6.º duque de Buccleuch, da parte do pai, e do 7.º duque de Rutland, por banda da mãe. O pai de Hugh divorciou-se em 1944, no próprio ano em que ascendeu ao baronato, para casar com a socialite Ruth Mary Clarisse Ashley, neta do banqueiro judeu Sir Ernest Cassel e filha do 1.º barão Mount Temple, além de irmã mais nova de Edwina Mountbatten, condessa Mountbatten de Burma e última vice-rainha da Índia, que as más-línguas asseveram ter sido uma bela bisca (depois de morrer, e ao saber que ela quis ter o cadáver lançado ao mar, a Rainha-Mãe terá desabafado, apenas e tão-só: “Dear Edwina, she always liked to make a splash.”) Depois disso, o pai de Hugh ainda se casaria uma terceira vez, desta feita com Diana Caldwell, definida na Wikipédia como uma “femme fatale da alta sociedade britânica”, o que é literalmente verdade já que, por um lado, manteve durante anos um alegre triângulo amoroso com o marido e com uma amante lésbica, Lady Patricia Fairweather, filha do 2.º conde de Inchcape, e, por outro, o seu nome surgiu envolvido num dos maiores mistérios criminais do século XX, daqueles que os ingleses adoram, o homicídio de Josslyn Hay, 22.º conde de Erroll e militante nazi que, após ter causado basta escandaleira em Londres, aportou ao Quénia em 1924, onde logo se tornou uma das figuras mais gradas do chamado “Happy Valley”, um grupo de filhos-família problemáticos que, geralmente por más razões, se fixaram numa das mais belas regiões do país, onde levavam uma vida de depravação e boémia, com adultérios cruzados e orgias sexuais regadas a álcool, cocaína e, nos casos mais graves, heroína. O crash de 1929 abalou-lhe as fortunas, que eram imensas, pornográficas, mas a festa só terminou, e aí com fragor e estrondo, com a rebelião dos Mau-Mau, em 1952, e sobretudo com a independência do país, em 1963.

Entre os nomes da promíscua pandilha, e just to name a few: além de Lord e de Lady Delamere, o citado Josslyn Hay, misteriosamente morto; o cavaliere Galton-Fenzi Leone, também uma bela peça; o baronete Sir John Broughton, suspeito do assassínio de Hay, depois morto de overdose; Raymond de Trafford; a socialite americana Kiki Preston, podre de rica; o conde francês Frédéric de Janzé, cuja mulher, após ter sido também suspeita do homicídio de Hay, se matou em 1941 com um tiro de caçadeira; a ninfomaníaca Idina Sackville, filha do 8.º conde de la Warr, cinco vezes casada e outras tantas divorciada, inspirando depois a recentíssima música “The Bolter”, da Taylor Swift.

Foi este, e não o que vemos no filme, o real cenário de África Minha, cuja autora, Karen Blixen, frequentava igualmente aquele círculo dos infernos, ainda que com um pouco mais de prudência e distância. E foi também este o berço do nosso falecido, que estudou em Eton e se formou em Cambridge, indo depois para Soysambu, o rancho queniano da família, onde levou uma existência confortável: casado com a filha do antigo governador do país, Sir Patrick Muir Renison, vivia numa mansão servida por mais de 20 criados de dentro, onde construiu uma gigantesca pista para os seus comboios de brincar, do tamanho de quatro mesas de pingue-pongue. Apaixonado pela caça grossa, mas também um devoto conservacionista, Hugh mantinha relações ambíguas com a população local, umas vezes cordatas e amigáveis, outras marcadas por grandes tensões, com laivos de paternalismo racista. As coisas piorariam em 2005 e 2006, quando o seu filho mais velho, Tom, um playboy incorrigível falecido de ataque cardíaco aos 48 anos, surgiu envolvido no homicídio de um guarda do Kenya Wildlife Service e, depois, de um pedreiro inocente, que ele confundira com um caçador furtivo. Sob uma chuva de críticas, o procurador retirou a queixa pelo primeiro crime e, quanto ao segundo, Tom cumpriu cinco de uma pena de oito meses, além de ter passado três anos em preventiva na agreste prisão de segurança máxima de Kamiti, em Nairobi.

Nada disto, convenhamos, tornou os Delamere populares no país. E, como se não bastasse, têm sido frequentes os conflitos em torno das suas vastas e diversas propriedades, por causa de limites de terras e não só. Diz-se que, com a morte de Hugh George Cholmondeley, se vira uma página na história do Quénia colonial e pós-colonial. A ver vamos: os Delamere são imensamente ricos e já há um 6.º barão em funções – o seu neto –, que esperemos tenha mais juízo e tino do que os seus antecessores, gente que não soube estar.

Escreve de acordo com a antiga ortografia. 

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