Já cá não está quem falou - Francilene Gomes Fernandes (1980-2024)
De cancro na tiroide depois alastrado aos ossos e aos pulmões, morreu Francilene Gomes Fernandes no passado dia 28, em São Paulo, onde morava. Era muito nova, 44 anos, e deixa marido e três filhos, além de ambos os pais ainda vivos, Francisco e Maria, com 77 e 74 anos, respectivamente.
Antes dela, já haviam partido a sua irmã Juliana, morta aos 17 anos pela polícia, na década de 1990, e o irmão Paulo Alexandre, de 23 anos, desaparecido em 16 de Maio de 2006 em Itaquera, na zona leste da capital paulista, após ter sido abordado, segundo várias testemunhas, por uma viatura da tropa de elite da Polícia Militar, a temida ROTA, acrónimo de Rondas Ostensivas Tobias Aguiar. Até ao fim da vida, “Fran”, o petit nom por que era conhecida entre os amigos, sustentou que Paulo, que não tinha antecedentes criminais, fora interceptado pela ROTA pelo simples facto de ser negro e de ter tatuagens no corpo.
Graças a uma bolsa de estudos, Francilene Gomes Fernandes formou-se em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2007, após o que fez o mestrado e se doutorou na mesma instituição, com uma tese que culminou num livro publicado há pouco, Tecendo Resistências - Trincheiras contra a violência policial (Cortez, 2024). Foi coordenadora de alguns espaços do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) de São Paulo e docente em cursos universitários de Serviço Social e Gestão Pública, mas será recordada sobretudo por ter sido uma das fundadoras e líderes do movimento Mães de Maio, o qual, evocando aqueloutro criado em Santiago do Chile nos idos de 1977, tem procurado saber o que sucedeu aos muitos desaparecidos nos chamados “Crimes de Maio” de 2006, nos quais terão sido mortas 493 pessoas. Dessas, a esmagadora maioria, cerca de 400, eram “jovens negros, descendentes afro-indígenas ou pobres”, informa-nos o movimento.
Na origem destes massacres, de que hoje já nem nos lembramos, esteve a onda de atentados desencadeada na noite de 12 de Maio contra as forças de segurança e contra diversos alvos civis no Estado de São Paulo, por ordem do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior organização criminosa do país-irmão. Na véspera, a Secretaria da Administração Penitenciária determinara a transferência de 765 reclusos para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, uma prisão de segurança máxima; entre eles, o líder do PCC, “Marcola”, um mariola que se iniciou no crime aos 9 anos e que se encontra preso desde 1999, no cumprimento de penas que ao todo somam para cima de 300 anos.
A ordem de transferência para a Penitenciária 2 fora dada, ao que parece, pela revelação, obtida através de escutas telefónicas, de que a liderança do PCC planeava uma vaga de motins nas prisões do país, a qual acabaria por ocorrer, justamente no dia 12 de Maio, em 74 estabelecimentos prisionais paulistas, alastrando, dois dias depois, a diversos outros Estados: Espírito Santo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais. A par das rebeliões nas prisões, com inúmeras tentativas de fuga, o PCC orquestrou uma gigantesca vaga de ataques nas ruas: só em São Paulo foram incendiados 51 autocarros, além de atentados contra esquadras de polícia, sedes de bombeiros e agências bancárias, perpetrados com granadas, bombas de fabrico artesanal, metralhadoras e outras armas de guerra. De permeio, ameaças bombistas em estâncias turísticas, colégios privados, no aeroporto de Congonhas, etc. Foram mortas, pelo menos, 45 pessoas: 23 polícias militares, sete polícias civis, três guardas municipais, oito funcionários prisionais e quatro civis.
Sob as ordens do governador Cláudio Lembo, e em estreita articulação com o presidente Lula da Silva (que colocou à disposição daquele a Polícia Federal e, inclusive, as Forças Armadas), a “onda de resposta”, como lhe chamaram, teve os contornos de uma manobra bélica: a Polícia Militar cancelou folgas, convocou todos os seus efectivos e lançou dezenas de operações-relâmpago, especialmente na zona da Baixada Santista. Delas resultaram a morte de 26 agentes públicos e de 454 civis. Oito em cada dez vítimas eram jovens até aos 35 anos, 96% dos quais do sexo masculino, mais de metade negros ou pardos. Apenas 6% eram cadastrados.
O resto são informações desencontradas e boatos, suspeitas não-confirmadas, números que não batem certo. Diz-se, sem grande base, que os motins surgiram em protesto pela corrupção das autoridades policiais e prisionais; alega-se que a rebelião prisional foi o álibi usado para uma inaudita violência de Estado, falando as Mães de Maio em “democracia das chacinas” e até em “genocídio”; afirma-se que houve um acordo de tréguas entre o Governo Estadual e os líderes do PCC, algo que o primeiro negou (mais tarde, o governador Lembo reconheceu que se avistou com a advogada de “Marcola”, e que tal contribuiu para uma paz precária); um relatório garantiu que 60% das vítimas tinham sido baleadas na cabeça, indiciando execução sumária, enquanto outro concluiu que, em 87% dos casos, os disparos foram feitos à distância. Em paralelo, actuaram “grupos de extermínio” ou “esquadrões da morte”, compostos por matadores profissionais a soldo, mas pouco se sabe em concreto.
No meio desta orgia de violência - de parte a parte, note-se -, o desaparecimento de Paulo Alexandre foi só uma gota de água, ou de sangue, e, pese os denodados esforços da sua irmã Francilene, não só nada se apurou ao certo como os inquéritos aos “Crimes de Maio” acabaram sucessivamente arquivados pela Justiça.
Seis anos depois, em finais de 2012, uma nova onda de ataques contra polícias: durante um mês, a cada dia, um ou dois agentes foram mortalmente baleados, geralmente quando se encontravam de folga ou no gozo de férias.
Muitos foram executados quando entravam ou saíam de casa, perante o olhar atónito de familiares e amigos. Assim se vê a força do PCC.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.