Já cá não está quem falou. Dumitru Popescu (1928-2024) e Bela Karolyi (1942-2024)

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No espaço de poucos dias, a morte de dois romenos, um mais famoso do que outro, é certo, mas ambos artífices ou cúmplices de uma das ditaduras mais atrozes que o século XX conheceu, a de Nicolau Ceaușescu, o filho de camponeses pobres e aprendiz de sapateiro que desde novo se converteu ao comunismo, sendo preso várias vezes. Depois, subiu aos poucos – e a pulso – na hierarquia do Partido, até conquistar a sua liderança em Março de 1965. Visto ao início como um moderado, que se distanciou da URSS e condenou a invasão da Checoslováquia, apresentou-se ao mundo como um reformador, viajou pelo Ocidente, Portugal incluído, nos idos de 1975, fez a Roménia aderir ao GATT, celebrou acordos com a CEE. Em simultâneo, porém, ia liquidando brutalmente os seus opositores, ou internando-os em hospitais psiquiátricos, além de ter criado uma tenebrosa polícia política, a Securitate, proibido o aborto e dificultado o divórcio, medidas que iriam encher os orfanatos do país de milhares de crianças ao abandono, em condições indescritíveis que o mundo conheceria, horrorizado,

após a derrocada do seu abominável regime.  

Uma viagem pelo Oriente Extremo, em 1971, deixou-o fascinado pelas férreas lideranças de Mao Zedong e Kim Il-sung e, regressado a casa, não tardou a copiá-las, pondo em prática um dos mais absurdos cultos de personalidade de que há memória, inclusive nos países comunistas do Bloco Leste.  

Dumitri Popescu promoveu o culto à personalidade de Nicolau Ceausescu.

O sumo sacerdote desse culto, a quem já chamaram “o grande pontífice da religião política ceausista”, foi Dumitru Popescu, falecido há dias com 96 anos, um homem que até ao final da vida se manteve um intransigente defensor do tirano que antes servira com afinco extremo, a ponto de ser conhecido na Roménia comunista como “Deus”, tal era a dimensão do seu poder – e o modo implacável como amordaçava a imprensa e destruía todos os suspeitos de dissidência. Formado em ciências económicas em 1951, aderiu ao Partido dois anos depois e, além de jornalista medíocre, foi ascendendo aos mais altos cargos, tornando-se um apparatchik sem falhas e um dos principais ideólogos daquela ditadura: vice-presidente da Comissão Estatal de Cultura, entre 1962 e 1965; membro do comité central do Partido e, a partir de 1969, da sua comissão executiva. Na década de 1970, tornou-se a cada dia mais próximo de Ceaușescu e da sua sinistra mulher, Elena, e, entre 1971 e 1976, presidiu ao Conselho de Cultura e Educação Socialista. Acumulou com o cargo de deputado, entre 1965 e 1989, e, em 1981, foi nomeado reitor da Academia de Educação Sociopolítica “Ștefan Gheorghiu”, a escola de formação de quadros do Partido, que o mesmo é dizer do Estado.  

Já foi comparado a Josef Goebbels, pois, na verdade, não lhe ficou atrás na subserviência a um déspota e no modo como o exaltou em escritos e em discursos vários, nos quais falava de Ceaușescu como um novo Péricles ou, noutras ocasiões, como uma reencarnação de Bonaparte ou de Abraham Lincoln (!). Montou uma eficaz e letal máquina de propaganda e censura (inclusive aos desenhos animados que mostrassem animais…) e, ao que parece, conquistou o apelido “Deus” por ter dito aos jornalistas, num encontro em Bucareste, na Casa Scânteii (hoje, Casa da Imprensa Livre), “eu sou o vosso pai, a vossa mãe, sou Deus”. Naturalmente, foi galardoado com a Ordem da Estrela da República Popular Romena, classe IV, “por méritos especiais no trabalho de construção do socialismo, por ocasião do 20.º aniversário da libertação da pátria”. Após a queda e morte de Ceaușescu, nunca renegou o seu legado, mesmo tendo reconhecido que, nos seus últimos tempos, Nicolau já não estava bom da cabeça e quem de facto governava o país era a sua mulher Elena. Personagem elusiva, que não tinha relações de amizade ou sequer de proximidade com ninguém, escreveu então livros de viagens e memórias, prenhes de platitudes, e refugiou-se na sua casa de férias, numa aldeia do condado de Teleorman, onde morreu em merecida amargura no passado dia 22 de Novembro (outras fontes asseguram que faleceu na sua casa num bairro operário de Bucareste: não estávamos lá para ver). 

Dias antes, a 15, morrera no Texas o lendário treinador da selecção romena de ginástica, Béla Károlyi, o qual, entre outros prodígios, deu ao mundo Nadia Comăneci, cheia de graça. Antigo campeão de boxe e de lançamento do martelo, Károlyi foi recrutado em 1968 pelo Ministério Nacional da Educação para fundar um instituto de treino de ginástica, onde cedo se tornou conhecido pela forma brutal como instruía as suas jovens pupilas, cujos êxitos internacionais serviram como uma luva à propaganda do regime de Ceaușescu, com o qual, importa dizê-lo, Károlyi manteve sempre uma relação tensa e por vezes conflituosa. Em 1981, no decurso de uma tournéepelo estrangeiro, pediu asilo político na América, onde acabou sendo escolhido treinador da equipa nacional de ginástica feminina, em parceria com a sua mulher, Márta Károlyi. Aí, fez nascer novos prodígios, como Kristie Philips, Dominique Moceanu e Erica Stokes, que mais tarde iriam denunciar os métodos abusivos e intimidatórios do seu mestre. Outras das suas alunas, como Nadia Comăneci, Mary Lou Retton, Phoebe Mills ou Kim Zmeskal, defenderam o seu bom nome, mas este acabou arrasado pelos depoimentos de várias ginastas romenas, como Emilia Eberle, Ecaterina Szabo ou Rodica Dunca, que se queixaram de que Károlyi chegava a bater-lhes e a deixá-las à fome, na sua obsessão pelas medalhas. Mais tarde, o seu nome surgiria envolvido no grande escândalo de abusos sexuais na equipa americana de ginástica, não por ter perpetrado qualquer abuso, mas por estes terem sido praticados pelo médico da equipa, Larry Nassar, no rancho-academia que Béla Károlyi possuía no Texas.  

Béla Károlyi fundou um instituto de treino de ginástica na Roménia antes de pedir asilo aos EUA.

Morreu em Houston, aos 82 anos, e, não tendo de modo algum responsabilidades comparáveis às de Dumitru Popescu, não deixou de contribuir, a seu modo e anos a fio, para o prestígio de um regime tirânico, apenas e tão-só pela ânsia das medalhas, sempre mais medalhas, e da vã glória nos estádios. Duas vidas distintas, sem dúvida, mas que se uniram na mesma transigência com a ditadura: num caso, mais efemeramente; no outro, até à morte. Num tempo em que de novo somos confrontados com o espectro da tirania, sirva esta nota para sabermos fazer escolhas difíceis.

Antes que escolham por nós.  

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