Quase dois anos após o início do conflito com o Hamas em Gaza, o objetivo de “vitória total” de Israel está ainda distante. O governo israelita parece ter desistido de recuperar os reféns — um dos dois grandes propósitos iniciais — e recusa discutir alternativas políticas à governação do Hamas, limitando a sua própria margem de manobra ao derrotar de forma efetiva. Enquanto isso, em Gaza, fome e morte imperam. Não vale a pena negar. Assim como o atentado terrorista do 7 de Outubro de 2023 deixou de servir de argumento para o arrastar desta guerra. Um país que se diz democrático e civilizado não responde à barbárie com a barbárie. Prosseguir com a ocupação total, sacrificando mais soldados e aprofundando o sofrimento de milhões de civis é uma estratégia que ameaça prender Israel numa guerra interminável e continuar a corroer os seus fundamentos morais. Repito: corroer os seus fundamentos morais. Mais: provocar uma das maiores cisões de sempre na coesão social deste país e de muita da sua população, que tanto já sofreu na História. É doloroso ver pessoas, especialmente judeus, que sempre estiveram ao lado de Israel, sentirem vergonha. Sou testemunha direta de uma apreensão crescente de que o Estado hebraico se possa destruir por dentro, com fuga de quadros e de famílias, até ao ponto que só ficam os extremistas bélicos e os religiosos que nem querem combater.O que mais é evidente, a cada dia que passa, é que Netanyahu foi para Gaza sem saber o que queria quando a guerra terminasse. Sem nunca pensar no dia seguinte, foi para uma guerra sem ter acautelado as soluções políticas que garantiam uma vitória no campo político. Foi para uma guerra fazendo sempre o que seria expectável, de acordo com o seu inimigo.Com uma liderança populista e messiânica, Israel é hoje politicamente muito diferente do que foi desde a sua fundação em 1948, quando tinha uma democracia saudável que durou anos, era (ainda é) motivo de orgulho e fator distintivo do restante Médio Oriente. Uma democracia que, como todas, comete erros, mas que deve saber corrigi-los e amadurecer com isso.À beira de uma operação militar de alto risco, destinada a ocupar a totalidade da Cidade de Gaza e a controlar militarmente toda a Faixa, as IDF (Israel Defense Forces) enfrentam três frentes críticas: a crescente politização das suas estruturas de comando, os dilemas jurídicos inerentes a uma ocupação total e o impacto humano devastador que a guerra tem exercido sobre os seus próprios soldados.O mais recente confronto entre o ministro da Defesa, Israel Katz, e o chefe do Estado-Maior, Eyal Zamir, vai muito além de um desacordo sobre nomeações de oficiais. Netanyahu não conseguiu convencer grande parte da opinião pública em Israel de que a captura integral de Gaza Cidade trará a vitória decisiva, algo que promete há quase dois anos. Zamir advertiu de que tal operação pode ser desastrosa, pondo em risco a vida dos reféns e dos soldados, sem oferecer ganhos estratégicos proporcionais. Isto bastou para ser considerado “um esquerdista” por membros do governo.O que está em causa é também o controlo sobre o futuro das IDF e do Shin Bet, as secretas internas israelitas. Netanyahu procura afastar altos responsáveis, nomear sucessores leais e transferir para as chefias militares a culpa pelo massacre do 7 de Outubro, o dia mais negro da História de Israel, um país que perdeu o controlo do seu território durante mais de 10 horas, resultando na morte de 1200 israelitas e estrangeiros, incluindo dezenas de crianças, mais de cinco mil feridos e 251 reféns.Além do plano militar, há um obstáculo jurídico a pesar. A advogada-geral Militar, Yifat Tomer-Yerushalmi, alertou que uma ocupação plena da Cidade de Gaza colocaria Israel sob a responsabilidade direta pelo bem-estar de centenas de milhares de palestinianos, agravando o isolamento diplomático e expondo o país a acusações de violação do Direito Internacional Humanitário.Esta advertência lembra que as leis da guerra impõem limites claros. Contudo, para a base política de Netanyahu, qualquer voz que invoque a lei transforma-se em alvo. Tal como Zamir, também Tomer-Yerushalmi é agora apresentada como obstáculo à “vitória final” prometida.A ocupação, separada ou total, impõe encargos e custos drásticos: responsabilidade sobre segurança, infraestrutura, saúde, água — tudo num território devastado, empobrecido e em colapso assistencial. A hipotética opção de “caminho fácil” militar esconde um labirinto legal e humano intrincado, que não pode ser ignorado.Entretanto, o preço mais silencioso da guerra paga-se em casa. Só em julho, foram seis os casos de suicídio de militares: três em serviço ativo, um reservista mobilizado e dois já desmobilizados. Desde o início deste ano, já se contam 17 suicídios de soldados que não conseguem viver com as imagens do que passaram nas ruas de Gaza. Não existem dados oficiais sobre antigos soldados que se suicidam após a dispensa, mas organizações de apoio a veteranos com stress pós-traumático acreditam que a cifra real é muito superior.A responsabilidade do Estado não é apenas vencer batalhas, mas preservar a integridade das suas instituições, proteger os seus cidadãos e agir dentro dos limites do direito e da ética. Ignorar estes princípios, sob o peso de agendas políticas, é abrir caminho a um impasse sangrento e prolongado.Mas é assim que o populismo funciona e basta estudar o que se passa em Israel para ver os efeitos nefastos de uma governação que se esconde na propaganda para se ir mantendo no poder a qualquer custo, apesar das vitórias aparentes que as Forças Armadas de Israel têm conseguido nos últimos meses.