Instruções para ter medo

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Um psiquiatra infantil é entrevistado num programa televisivo. Um telefone toca de repente. Uma criança ri (e geme, e respira fundo) ao telefone. O operador de câmara no estúdio mantém uma postura aberrantemente fixa, com um sorriso petrificado, o rosto tão liso como o de um manequim. Um vulto feito de palha em chamas percorre lentamente um corredor.

Os primeiros três minutos e meio do primeiro episódio da primeira temporada de Channel Zero (disponível na HBO Portugal) não exibem um único elemento original - já vimos e ouvimos tudo aquilo muitas vezes -, mas são três minutos e meio mais eficazes enquanto "terror" do que horas inteiras acumuladas de séries televisivas que operaram recentemente no mesmo território genérico: The Haunting of Hill House, The Haunting of Bly Manor, Castle Rock, American Horror Story, Lovecraft Country, etc.

Há razões para esta drástica discrepância, e nem todas são irredutivelmente pessoais. Mas tentar convencer alguém de que algo é assustador é como tentar convencer alguém de que algo é cómico: a coisa em si funciona nas extremidades nervosas muito antes de chegar às partes do cérebro susceptíveis a um argumento persuasivo. Um objecto interage com o nosso repositório privado de fobias e atavismos - e depois alguma coisa acontece, ou então não acontece. A função crítica é reduzida à mera asserção - e à descrição impotente: reparem neste bocadinho, considerem por obséquio este outro bocadinho.

Ao contrário das suas congéneres, Channel Zero não adapta obras literárias, mas partes do repositório semi-anónimo de folclore moderno conhecido como creepypasta. Uma modalidade narrativa online que explodiu em popularidade na primeira década do milénio, creepypasta consiste em pedaços de prosa concebidos para serem lidos como fragmentos (de fóruns, de emails, de caixas de comentários), construindo de modo aparentemente inadvertido uma história aterradora - quase sempre com raízes num qualquer mito urbano antigo ou recente, e portanto apresentados como tendo "realmente" acontecido.

Cada temporada é autónoma e curta: seis episódios de 40 minutos assentes numa premissa central e numa relação familiar específica. A primeira, intitulada Candle Cove (como a creepypasta clássica que a inspirou), acompanha o regresso relutante de um homem que perdeu o irmão gémeo na infância à sua cidade natal, para resolver o mistério um sinistro programa infantil que assombra as memórias de muitos adultos, mas pode nunca ter existido. A segunda, No-End House, é sobre a reacção de uma filha à morte prematura do pai, filtrada pela exploração colectiva de uma casa assombrada que pode ser uma atracção turística, uma instalação de arte conceptual, ou algo muito pior. A terceira (e talvez a melhor) temporada, Butcher"s Block, transporta duas irmãs para um bairro problemático e submete-as a uma analogia sobre pobres e ricos, demasiado óbvia (e, no fim de contas, irrelevante para o efeito final) para valer a pena resumi-la.

Channel Zero não é uma grande série televisiva. Seria, aliás, mais fácil argumentar que nem sequer se trata de uma boa série televisiva - sucumbe demasiadas vezes à inevitabilidade das suas limitações intrínsecas, e às tentações da familiaridade. Mesmo nestes sumários truncados, percebe-se que qualquer elogio não pode apelar à sua "originalidade". Muito do que faz, e muitos dos andaimes temáticos que utiliza, partilham a mesma predilecção contemporânea por narrativas de "trauma", normalmente situadas na intersecção entre "saúde mental" e "famílias disfuncionais", e normalmente estruturadas como um procedimento terapêutico traduzido em etapas narrativas. Um dos problemas deste tipo de histórias é a sua tendência para anexar todos os significados dispersos às explicações mais óbvias e (portanto) menos interessantes. Outro, igualmente frequente, é a forma como parece exigir diálogos explícitos: muitos dos elogios a ficções recentes que abordam temas de saúde mental referem-se quase sempre a diálogos que soam a transcrições directas de uma sessão de terapia, com tudo o que é relevante pacientemente itemizado. Como fórmula reiterada para produzir ficções de terror, é pouco menos que uma receita insípida, uma justificação predeterminada para transformar cada fantasma ou monstro numa metáfora com um caderno de encargos.

Mas Channel Zero, honra lhe seja feita, sintoniza, nesta e noutras áreas, uma frequência totalmente diferente: a dada altura, na terceira temporada, Rutger Hauer (num dos últimos papéis da carreira), consome literalmente a esquizofrenia de outra personagem, que, para efeitos visuais, tem o aspecto de uma centopeia gigante. O momento pertence a uma categoria na qual a série se especializa: a imagem que combina precariamente algo demasiado ridículo para incomodar e demasiado aberrante para que o riso não seja nervoso: figuras demoníacas compostas inteiramente de dentes do siso, palhaços contorcionistas, um rosto humano a inchar lentamente suspenso no vazio, um bebé deformado a subir uma escadaria de mármore isolada no meio do bosque.

Não é que Channel Zero não se leve demasiado a sério. Pelo contrário, não tem vergonha de ser ortodoxa, e de exibir sem pruridos um respeito visível pela categoria a que chamamos "terror", um respeito que não se resume ao mero desejo preguiçoso de reciclar. Ao contrário de todas as séries mencionadas no primeiro parágrafo, Channel Zero não parece concebida de propósito para ser elogiada por "transcender as convenções" do género a que pertence: prefere habitá-las com o conforto de quem conhece os cantos à casa e não tem outras ambições imobiliárias. Essa descontracção nota-se na quase exultante falta de fotogenia (os efeitos especiais são, na sua maioria, espalhafatosamente analógicos), e na louvável falta de ansiedade com deixar coisas por explicar: as personagens da segunda temporada, por exemplo, perdem algum tempo a tentar sistematizar as regras do universo em que se encontram, mas a série nunca tenta encorajar no espectador o mesmo nível de interesse.

Aderir a uma ortodoxia é um acto de obediência que, como qualquer outra profissão de fé, pode ser ligeiramente ridículo para quem está de fora a observar, mas também ligeiramente desconfortável. Tal como a fantasia heróica ou a ficção científica, o terror é um género em que um sentido do ridículo apurado pode ser um defeito, e a capacidade para não sentir vergonha pode ser uma virtude. Channel Zero tem estas e outras situações devidamente calibradas para o único projecto com o qual tem um compromisso incessante: criar inquietação, repulsa, ou desconforto, nem que seja por breves segundos.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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