Indo nós, indo nós, a caminho de Taiwan
Escrever que houve muita agitação na Assembleia da República ao longo da semana passada é uma ode ao eufemismo. Houve falta de respeito, desorientação, descontrolo e uma sucessão de atos e palavras que não dignificaram a democracia portuguesa, que tanto custou a conquistar antes do 25 de Abril de 1974, a garantir até ao 25 de Novembro de 1975 e a consolidar em todos os dias do calendário.
No final das sessões viram-se muitos deputados de rosto carregado, mesmo sem reconhecerem as suas próprias responsabilidades no processo de desvario em curso. E que tantos dedos se tenham esticado, numa competição para ver quem seria o acusador mais veemente, apontados para quem mais luta para defender a Assembleia da República só junta ignomínia aos danos provocados por quase todos.
José Pedro Aguiar-Branco terminou a semana a dizer algo simples, claro e livre: não lhe cabe, como presidente da Assembleia da República, censurar o discurso dos representantes eleitos do povo, os quais podem e devem responder pelos eventuais crimes que o Ministério Público, por iniciativa própria ou denúncia alheia, encontrem nas suas palavras. As tais que, para alguns deputados, são tão potencialmente letais que necessitam de ser silenciadas.
Com a mesma paciência que demonstrou no intricado processo de eleição para a presidência da Assembleia da República, Aguiar-Branco explicou a sua leitura do Regimento, voltou a disponibilizar-se para contribuir para a sua reformulação e realçou que não faria outra coisa se retirasse a palavra a deputados que dizem o que não lhe agrada. Assim acontece quando as bancadas mais à esquerda se referem ao “genocídio” alegadamente perpetrado por Israel na Faixa de Gaza, o que constitui um anátema sobre um país bem mais grave do que as considerações, insensatas e gratuitas, de André Ventura acerca da capacidade de trabalho do povo turco - ao qual também não faz sentido assacar responsabilidade coletiva pelo genocídio dos arménios, bem documentado e cometido décadas antes de os nazis construírem campos de extermínio como Auschwitz.
Tendo direito a defender-se de ataques sem sentido, Aguiar-Branco deverá focar-se no verdadeiro problema do debate parlamentar. Além de todas as complexidades decorrentes de uma governação minoritária e da profusão de partidos representados, o hemiciclo tornou-se uma arena de ovações sonoras dos maiores grupos parlamentares aos seus próprios oradores e de constantes apartes e pateadas aos outros, gerando um burburinho que irmana bons e maus discursos na inaudibilidade, pautados por gestos inapropriados, indignos e até ameaçadores.
É fácil e tentador culpar André Ventura e o Chega, que tem especialistas na perturbação dos trabalhos, mas quase ninguém sai impoluto na deriva esbracejante e decibélica (com ênfase no “bélica”, mais do que nos decibéis) que pode geminar São Bento com Taiwan, a ilha que, além da constante ameaça de invasão, não raras vezes testemunha confrontos físicos no seu Parlamento.
Para que não se dê o passo em frente, espera-se que, mais do que marcar pontos com manifestações de virtude ou vídeos virais, todos reconheçam que o caminho que estão a trilhar para o precipício, tendo em conta a elevada apetência de muitos deputados para ofenderem os pares, e o potencial de alguns deles para gestos irrefletidos, terá consequências irreversíveis.