Incêndio em Lisboa expõe tragédia das rendas antigas

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O incêndio que, no passado dia 3 de junho de 2025, destruiu por completo um prédio na Avenida Elias Garcia, em Lisboa, causando dois feridos e tornando o edifício inabitável, devia trazer ao debate público um problema estrutural da sociedade portuguesa: o regime das rendas antigas e as suas consequências desastrosas, não só para senhorios e proprietários, mas, sobretudo, para a dignidade com que se deve tratar a população idosa.

Segundo relatos da Proteção Civil e dos Bombeiros, o fogo deflagrou num edifício antigo, com elementos estruturais em madeira, o que permitiu uma propagação rápida e incontrolável das chamas para os pisos superiores, destruindo totalmente o prédio e obrigando ao realojamento dos residentes. Entre as vítimas, uma idosa de 93 anos que, segundo versão vinda a público, ali vivia em condições de salubridade e segurança precárias, tendo o acidente tido origem no imóvel.

A tragédia humana e patrimonial - felizmente sem vítimas mortais - volta a levantar uma questão incómoda que há demasiado tempo é ignorada ou tratada com demagogia. Na realidade, o regime das rendas antigas mantém inquilinos com rendas irrisórias a ocupar prédios inteiros durante gerações, em estado de crescente degradação, impossibilitando os senhorios de promoverem a respetiva reabilitação.

A história repete-se em Lisboa e em todas as grandes cidades do país: idosos com idades avançadas continuam a viver em apartamentos com rendas irrisórias, muitas vezes acompanhados por filhos adultos, por vezes já reformados, ou pior, abandonados à sua sorte e a viverem sozinhos. São centenas (senão milhares) de casos nos bairros históricos de Lisboa e do Porto e nos concelhos limítrofes: casas arrendadas antes de 1990, por valores simbólicos, e que vão passando de geração em geração, mesmo depois do falecimento do titular.

A solução, socialmente útil nos anos 60 e 70, tornou-se um problema crónico. Os descendentes dos titulares, muitas vezes com vida própria e meios de subsistência, quantas vezes acima da dos senhorios, optam por manter os pais idosos em apartamentos degradados, sem acompanhamento especializado, porque a lei lhes garante a manutenção de um direito de habitação a título praticamente gratuito, suportado inteiramente pelos senhorios. Em muitos casos, não há qualquer incentivo para procurar um lar condigno ou uma solução de cuidados continuados; pelo contrário, a permanência na habitação arrendada revela-se economicamente vantajosa para toda a família, sendo o respetivo custo social suportado por terceiros (os senhorios).

O incêndio na Avenida Elias Garcia é apenas o mais recente episódio de muitas tragédias anunciadas, para a qual muitos têm alertado, mas poucos têm tido a coragem de enfrentar. O regime das rendas antigas, longe de proteger os mais frágeis, perpetua a desigualdade e a ineficiência, condenando proprietários e inquilinos a uma convivência forçada, muitas vezes em condições indignas. Pergunta-se: quem paga agora os apartamentos destruídos? O Estado, através dos impostos de todos? Os partidos políticos que, na Assembleia da República, durante décadas bloquearam soluções justas e equilibradas? Os senhorios exauridos por anos de rendas simbólicas e impossibilitados de promover a manutenção e a segurança dos seus prédios? Ou os proprietários não-senhorios que, sendo obrigados a conviver com estas situações, vêm as suas casas destruídas?

É tempo de exigir respostas concretas e coragem política. Manter tudo como está é garantir que novas tragédias ocorrerão, que centenas de idosos continuarão a viver em casas sem segurança e que famílias inteiras se acomodarão à sombra do regime das rendas antigas e não cuidem dos seus “velhotes”. O prolongamento artificial do direito ao arrendamento por sucessão, em contratos assinados há meio século, não serve os interesses de ninguém: não protege verdadeiramente os idosos (que permanecem em casas degradadas, muitas vezes sem acessibilidades nem condições de segurança), não respeita o direito de propriedade e contribui para a diminuição da oferta habitacional nas cidades. É urgente discutir um novo modelo de habitação e de apoio à população idosa.

Advogado e sócio fundador da ATMJ - Sociedade de Advogados

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