Imigração e nacionalidade: assim, de repente, algumas inconstitucionalidades

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Um primeiro Governo AD adotou medidas com bom senso e, que, acima de tudo, eram necessárias. Doa a quem doer, a imigração estava desregulada. Mas eis que agora tudo muda, e surgem propostas a nível de imigração e nacionalidade que começam a pisar linhas vermelhas. E note-se que até surgem com uma leveza extraordinária, quase uma alegria orgulhosa, repetindo-se a palavra “humanismo” a espaços, para dar uma ideia fofinha.

Eu não vou falar de política de imigração. Vou falar de Direito. É que, no que toca a política, podemos concordar ou não. Mas no que toca à Constituição (e Direito Internacional), há regras acima do Governo, da AR, e seja de quem for. E não, mudar a Constituição não é remédio santo. Há normas que não podem ser revistas. E ainda bem.

Vou enunciar apenas alguns temas.

a) Perda da nacionalidade para naturalizados há menos de dez anos: acaba com um princípio estrutural português - o de que não há distinção (a não ser para eleição de Presidente da República) entre nacionais de origem e naturalizados. Agora passamos a ter duas categorias diferentes de cidadãos nacionais. Esta medida levanta ainda dúvidas de proibição da discriminação a nível penal: se a pena (de prisão ou outra) é suficiente para cidadãos de origem (ou naturalizados há 11 anos), por que motivo não o é para quem foi naturalizado há nove?

b) Outro princípio basilar era o de que o Estado não podia retirar a nacionalidade aos seus cidadãos. Portugal, aqui, distinguia-se de outros Estados europeus, que se apressaram a alterar os seus regimes no rescaldo dos atentados terroristas nos inícios do século XXI, retirando a nacionalidade em caso de envolvimento em crimes desse tipo. Os organismos internacionais não proíbem, em si, a retirada unilateral de nacionalidade, mas reservam-na para atos que põem em causa a sobrevivência do Estado. Ora, com as propostas do Governo, será possível tal retirada em caso de crimes como ofensa à integridade física ou outros puníveis com pena de prisão de cinco anos ou mais. Direito fundamental à cidadania, proporcionalidade das penas, tudo respostas a que espero que o Tribunal Constitucional seja chamado a responder.

c) Reagrupamento familiar: entretanto, descobriu-se que havia uma Diretiva na UE nesta matéria e não se podia suspender reagrupamentos só porque nos apetece. Então a ideia foi restringi-los ao mínimo dos mínimos, ao limiar mais baixo que a diretiva permita. Quando ela foi aprovada, restringiu tanto o direito, que o Parlamento Europeu decidiu pedir ao Tribunal de Justiça da UE que a anulasse por violação do direito à família. Este só não o fez porque confiou que os Estados não desceriam tão baixo, e continuariam a respeitar os Direitos Humanos. Assim o fizemos durante mais de 20 anos. Esta semana decidimos inverter a marcha. Então vai ser assim: filhos de imigrantes podem vir já, cônjuge espera dois anos. Os filhos que escolham com quem querem ficar. É assim para toda a gente, menos para os imigrantes altamente qualificados e ainda aqueles que o Governo continua a insistir que fazem muita falta à sociedade portuguesa: os titulares de vistos gold.

d) O Governo quer ainda restringir o direito à tutela jurisdicional efetiva, dizendo que, face à omissão da AIMA perante um pedido de reagrupamento familiar, não se pode recorrer a ações urgentes nos tribunais administrativos (como a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias). Como assim? Então agora decide-se por decreto fechar a porta dos meios que temos de acesso aos tribunais? Sou só eu a ver aqui um dos mais importantes princípios do Estado de Direito a ruir?

Ainda se vai a tempo de parar isto tudo (já que o Conselho Nacional das Migrações não foi tido nem achado). Em último caso, teremos sempre o Tribunal Constitucional.

Professora da Faculdade de Direito da Universidadede Lisboa

Investigadora do LisbonPublic Law

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