Mais uma vez o debate sobre a imigração está poluído de ideias pré-concebidas, quer à direita, quer à esquerda. Fala-se de redes instaladas de transporte de turistas para virem fazer exames e tratamentos médicos caríssimos ao nosso país. Mas escasseiam dados efetivos, quer de números desses utentes, quer de dívidas ao SNS. Por outro lado, fazem-se cartas a clamar pela inconstitucionalidade da restrição dos imigrantes em situação irregular (ou turistas) ao SNS, e não se estuda primeiro a Constituição..Comecemos pelo primeiro: é muito difícil ter uma opinião consolidada sem saber ao certo os factos: estamos a falar de quantas pessoas a virem aproveitar-se do SNS? Se é como se pinta: um abuso do sistema verdadeiramente insustentável, então não poderei estar mais de acordo com as alterações à lei. Uma coisa é um direito fundamental de acesso à saúde, outra o abuso do direito, o aproveitamento espertalhão da universalidade dos nossos cuidados médicos, sustentado por todos os que cá vivem, trabalham e descontam no respeito pela lei. Custa-me ter uma opinião sustentada quando não se conhece a realidade, mas serei sempre contra aproveitamentos abusivos do sistema em nome de um pseudo-humanismo..Passemos ao segundo ponto. É, de facto, inconstitucional, limitar o acesso de estrangeiros em situação irregular, ou de turistas, ao SNS? Em cartas e discursos aparecem as referências ao princípio da equiparação, que consta do artigo 15.º da Constituição: “Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português”. Daqui retira-se apressadamente um acesso igual a TODOS os direitos. Quando.escrevi a minha tese de doutoramento, em 2015, precisamente sobre Direitos Fundamentais dos Imigrantes, ainda se discutia se os imigrantes em situação irregular estariam abrangidos por esta norma. Sempre defendi que SIM: “encontram-se” em Portugal, logo estão abrangidos pela equiparação. Entretanto, o discurso geral saltou para o extremo inverso: a única possibilidade é, então, que “os imigrantes em situação irregular gozam de TODOS os direitos dos portugueses”. Se fosse assim tão simples, não precisávamos de um Tribunal Constitucional. Era só ler a Constituição, cuja letra daria uma resposta final para tudo. Só que a Constituição permite restrições a esse princípio da equiparação. E pode, sim, excluir alguns direitos a imigrantes em situação irregular, desde que respeitados alguns limites e haja motivo razoável..Equivale isto a dizer que, se de facto existir um acesso abusivo ao SNS, temos aqui um motivo razoável de limitação. Também poderá ser esse o caso se o acesso universal estiver a ser insustentável para as contas do país ou para os meios humanos. Mas temos limites inultrapassáveis, também. Nunca poderemos excluir imigrantes em situação irregular dos cuidados emergentes. Antes de 2019 era apenas isto que havia, e ninguém gritava pela inconstitucionalidade. Acrescento ainda, pegando agora nas boas lições da pandemia: também não os podemos excluir do acesso a cuidados relativos a doenças infecto-contagiosas (incluindo vacinação), já que cuidar da saúde pública é também tarefa do Estado Português..Enfim: no meio talvez esteja a virtude. Como sempre.