III - As Causas Próximas da Primeira Revolução Portuguesa
Como os factos revelam, em especial, a partir da morte do rei D. Fernando, em 22 de Outubro de 1383, a Primeira Revolução Portuguesa não aconteceu como fruto de um planeamento pré-concebido por uma elite nobre, eclesiástica, burguesa ou popular, mas teve lugar em consequência da ausência de respostas aos problemas concretos que foram surgindo e se agravando no país, sobretudo após o falecimento do monarca português.
No desenho do processo revolucionário, para além das significativas alterações visíveis que se vão operando na sociedade medieval portuguesa, designadamente, com a ascensão da influência das elites citadinas, são principalmente as circunstâncias sociais e políticas que vão ditando os passos subsequentes das forças em confronto, quase sempre, em resposta ao jogo das reacções e movimentos dos adversários.
Se a Grande Fome e a Peste Negra tiveram consequências nefastas em Portugal - tanto no campo, como nas cidades -, pior ainda foi a participação portuguesa na Guerra dos Cem Anos (1337-1453), encabeçada por Inglaterra e França.
Em consequência das suas interconexões, na guerra civil aberta em Castela, Henrique de Trastâmara, filho natural de Afonso XI e de D. Leonor de Gusmão, portanto irmão bastardo do rei D. Pedro de Castela, com a ajuda de Aragão e da França, proclama-se rei em 1366, intitulando-se Henrique II e obrigando o rei legítimo a pôr-se em fuga para Baiona, em França, território do rei de Inglaterra.
O vencido rei D. Pedro, apoiado por tropas inglesas, reconquista o trono, batendo as forças combinadas dos Trastâmaras e francesas na Batalha de Nájera, em 6 Abril de 1367. Quase dois anos depois é derrotado por Henrique II em Montiel, em 14 de Março de 1369, sendo por ele apunhalado no dia 23 do mesmo mês.
"Se a Grande Fome e a Peste Negra tiveram consequências nefastas em Portugal - tanto no campo, como nas cidades -, pior ainda foi a participação portuguesa na Guerra dos 100 Anos (1337-1453), encabeçada por Inglaterra e França."
Face à situação, no intuito de recuperar os privilégios perdidos, os filhos do assassinado rei D. Pedro e seus partidários convidam o rei D. Fernando a proclamar-se rei de Castela, assegurando-lhe que lhe fariam menagem, dariam vilas e o receberiam por senhor, como de facto veio a acontecer.
O monarca português, alegando parentesco, pois era bisneto de Sancho IV de Castela, e considerando-se legítimo herdeiro do trono de Leão e Castela, entra na Galiza e comporta-se como autêntico rei do país vizinho. Entre várias cidades e vilas, que tomaram sua voz, é bem recebido em Tui e Corunha. Da enorme lista dos fidalgos e cavaleiros que se lhe juntaram, pela sua importância futura, é de salientar João Fernandes Andeiro, o mais honrado de Corunha, que também o recebe por senhor.
Contudo, quando Henrique II responde, como não ia preparado para a batalha, foge por mar para a cidade do Porto.
Sem oposição, o rei castelhano entra em Portugal, incendeia Braga e cerca Guimarães. Em virtude de os mouros granadinos atacarem Algeciras, regressa ao seu país, tomando primeiro Vinhais, Bragança, Cedovim e Miranda.
A esta guerra (1369-1371), sucede a segunda (1372-1373). Mudando de estratégia, D. Fernando renuncia à sua candidatura ao trono castelhano e apoia as pretensões de D. João de Gante, duque de Lencastre, segundo filho do rei Eduardo III de Inglaterra, por estar casado com D. Constança, filha ilegítima do falecido rei D. Pedro de Castela.
Sem a aguardada ajuda inglesa, mais uma vez, Henrique II leva a melhor sobre Portugal: depois de conquistar Almeida, Pinhel, Linhares, Celorico e Viseu, avança mais para o sul. Cascais entrega-se sem combate e Lisboa, cercada por espaço de 30 dias, vê os termos saqueados, e a Rua Nova, a freguesia da Madalena e de São Gião, assim como a judiaria incendiadas.
Apesar de ter sido estabelecida a paz por intermediação papal, na primeira e segunda guerra, na terceira (1381-1382), entrando abertamente em choque com os seus conselheiros, que o tinham aconselhado a não fazer guerra, D. Fernando, por sua livre iniciativa, aproveitando o falecimento de Henrique II, tenta vingar no seu filho, D. João I, os desastres infligidos pelo pai.
Reacende-se a habitual guerra fronteiriça, a Armada portuguesa, por incompetência de João Afonso Telo, irmão da rainha, é derrotada na Batalha de Saltes e os expedicionários ingleses, em lugar de defenderem a terra portuguesa, comportam-se como autênticos bandos armados: roubam, matam e violam mulheres em Lisboa e no seu termo. Enviados para a fronteira de Odiana, em vez de entrarem em Castela, atacam Vila Viçosa, combatem Borba, Monsaraz e Avis, escalam Redondo e tentam, sem sucesso, escalar Évora-Monte.
Como escreveu Fernão Lopes, no prólogo da Crónica Fernandina, quando D. Fernando começou a reinar, era o rei mais rico que Portugal até então tivera, porém, deixou uma herança lastimosa:
A quebra da moeda e o lançamento de novas dificultaram os cálculos de equiparação e alteraram o preço dos produtos; a fronteira viveu em permanente sobressalto e grande parte da marinha foi destruída; o tesouro ficou exausto e a economia asfixiada; os maus anos agrícolas e o roubo do gado agravaram a situação nos campos; os mesteirais, revoltados contra o casamento do rei D. Fernando com D. Leonor Teles, foram dominados violentamente; os ingleses, desembarcados para ajudar o monarca português, por terem actuado como autênticos conquistadores, são tratados pelas populações como invasores; a parte mais rica da cidade de Lisboa foi roubada e depois incendiada pelos castelhanos; a rainha D. Leonor, comportando-se como verdadeira dona e senhora do trono, adoptando uma política proteccionista de seus familiares e amigos, espalha na governação o compadrio e a incompetência; os infantes D. Dinis e D. João são por ela influenciados e constrangidos a refugiarem-se em Castela, e D. João, Mestre de Avis, só não foi executado, depois de preso, por não terem sido cumpridas as ordens da rainha.
A acrescentar a essas e outras desditas, a forte influência dos estrangeiros na política portuguesa e a opção final pelo Papa de Avinhão, em vez do Papa de Roma, no Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), faz aumentar a oposição e anuncia a iminência da ruptura.
Contudo, nem tudo foi negativo no reinado fernandino:
Ele tentou virar a marcha dos acontecimentos com lançamento de reformas militares, com a criação de uma muralha em Lisboa, a publicação da Lei das Sesmarias, a almotaçaria nos preços, a protecção à indústria naval, a criação da Companhia das Naus e das Bolsas de Lisboa e Porto, todavia, essas e outras medidas foram insuficientes para travar a insatisfação reinante e o avolumar das contradições da sociedade portuguesa.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia