IC20 em contramão
Muito francamente, não queria acreditar no que lia. A via rápida da Caparica, o mesmo é dizer o IC20 que liga Almada à Costa, vai ser alargada. Já não chegam as três faixas para cada lado e, portanto, há que criar mais uma, pois assim o estonteante tráfego médio diário de 60 mil veículos pode aumentar até, digamos, uns 80 mil. Um rio de chaparia e motores a desaguar, de um lado, na Ponte 25 de Abril e, de outro, no Atlântico. Progresso puro, mas do século passado.
Esta poderia ser uma notícia local, pouco enquadrável na minha crónica semanal, mas a verdade é que me suscita uma enorme perplexidade. A questão é bem nacional, para não dizer planetária, uma espécie de mundo ao contrário. Quando a palavra de ordem para a neutralidade carbónica é reduzir viagens e transferir as que são inevitáveis para modos mais sustentáveis - transporte coletivo - há uma subconcessionária da Infraestruturas de Portugal, de nome Autoestradas do Baixo Tejo, que vai fazer valer um contrato datado e alargar a via, pois assim atrairá mais tráfego, afinal de contas o seu negócio. E o concedente, ou a sua tutela, deverão estar de acordo pois a obra está mesmo para arrancar.
O assunto não tem ponta por onde se lhe pegue. Vejamos: quando estudei transportes no meu curso de engenharia civil, aprendi a calcular a capacidade das vias. Quando à velocidade certa e com as distâncias de segurança ajustadas, era possível fazer passar o maior número de veículos por hora numa secção da via. E aprendi também que quando o volume de tráfego aumentava, se devia alargar a estrada, multiplicando o número de faixas, de forma a garantir a capacidade que a procura reclamava. É o que querem fazer no IC20. O que não bate certo é o facto de eu ter aprendido essa matéria há quase 40 anos, quando o petróleo reinava e a taxa de motorização era um indicador de desenvolvimento.
Todos sabemos, hoje, que a dose fez o veneno. Aumentar a capacidade das vias é hoje um convite para que mais carros se façam à estrada, normalmente com apenas uma ou duas pessoas a bordo. E mais carros significa mais externalidades negativas, o tal caminho para a insustentabilidade que tem encapsulado o aquecimento global e a fatalidade das alterações climáticas.
Segundo a Comissão Europeia, o custo anual das externalidades pela utilização de veículos ligeiros na EU num ano pré-pandémico (2016) estava avaliado em 565 biliões de euros, o equivalente a mais de duas vezes o PIB português atual. As duas maiores parcelas, quase iguais, são o congestionamento e a sinistralidade (35-37%); depois vem o clima, a poluição do ar, o ruído, os danos no habitat e as emissões a montante (well-to-tank).
Bem se percebe que a tónica das políticas modernas de mobilidade seja a promoção da transferência modal, isto é retirar viagens de modos menos sustentáveis para que se realizem em modos mais sustentáveis. Trocado por miúdos, quer dizer migrar viagens de modos individuais para coletivos e de modos motorizados para ativos (pedonal e ciclável). O contrário do que se quer fazer na Margem Sul.
Não admira que cidadãos e organizações da sociedade civil tenham promovido uma petição para parar esta barbaridade. Podemos encher a boca todos os dias com o chavão da neutralidade carbónica, aprovar um roteiro com o mesmo nome, assinar o Acordo de Paris, elaborar um Plano Nacional para a Energia e Clima, enfim, proclamar o amor ao planeta, mas é no terreno e nas decisões concretas que mostramos se estamos à altura do desígnio.
Professor catedrático