Houellebecq e a teoria do mal menor

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O romancista francês Michel Houellebecq, amado por muitos e odiado por ainda mais, pelos seus livros e pelas suas entrevistas, terá motivos para encenar um sorriso perverso, mesmo grotesco, ao observar a situação política francesa. Derrotada a Reunião Nacional, graças a um sistema eleitoral de círculos uninominais disputados a duas voltas - criado à medida para travar a ascensão da extrema-direita quando esta ainda se chamava Frente Nacional e era liderada pela geração anterior da família Le Pen -, o país mergulhou na ingovernabilidade, com a absoluta relativização da maioria obtida pela Nova Frente Popular.

Sucedem-se as manobras para encontrar um primeiro-ministro capaz de fazer a coabitação com o presidente Emmanuel Macron, que nos últimos anos viu o seu centrismo encolher da maioria absoluta para a relativa, antes de só não ficar ainda mais minoritário devido às desistências cruzadas com a aliança que federou praticamente toda a esquerda, o que impediu que a Reunião Nacional fizesse equivaler ao maior número de votos um maior número de deputados.

No Palácio do Eliseu, Macron olha para o peso que resta ao partido que criou em 2016, um ano antes de derrotar Marine Le Pen pela primeira vez, como um meio de condicionar os vencedores das eleições antecipadas. Vê-se ao espelho como demiurgo de uma solução que abranja partes da Nova Frente Popular (socialistas e ecologistas, sobretudo), juntando-lhes os seus e talvez até o que subsiste da direita tradicional.

Sendo claro que afastar da governação a França Insubmissa, do radical de esquerda Jean-Luc Mélenchon, verdadeira locomotiva eleitoral da Nova Frente Popular, seria uma traição à vontade dos franceses, aumentando a quantidade de eleitores que se consideram excluídos pelo “sistema”, como se não bastassem os dez milhões que votaram na Reunião Nacional, é muito possível que seja a solução menos má para um grande problema.

Mas verdadeiramente complexo é o problema de fundo: em França, como em grande parte do mundo, a ideia da escolha do mal menor, com todos os riscos que acarreta, sedimenta-se nos regimes democráticos. As reais perspetivas de uma maioria absoluta dos extremistas da Frente Nacional, que seria possível e até provável caso não tivesse ocorrido o voto útil que Marine Le Pen e o seu candidato a primeiro-ministro, Jordan Bardella, apelidaram de “alianças contranatura”, levaram a que muitos franceses abrissem as portas do poder a outros extremistas, mas de sentido contrário.

Se uns culpam os estrangeiros pobres, quando não os pobres em geral; outros culpam os estrangeiros ricos, quando não os ricos em geral; se uns poderão querer deportar milhões, outros poderão querer confiscar milhões. Todos garantem respeitar a democracia, mas é legítimo, e até prudente, admitir que tal perceção possa variar perante determinadas circunstâncias.

Michel Houellebecq terá motivos para sorrir perante este cenário porque previu as consequências do mal menor em Submissão, romance que lançou no início de 2015, prevendo que as Presidenciais francesas de 2022 ficariam marcadas pela vitória de Mohammed Ben Abbes. O jovem presidente do recém-criado partido Fraternidade Muçulmana triunfaria sobre Marine Le Pen na segunda volta, contando para tal com o apoio do centrista François Bayrou, que em troca seria nomeado primeiro-ministro pelo novo chefe de Estado. As consequências não se fariam esperar: a França seria islamizada, com a legalização da poligamia, a proibição do acesso das mulheres ao trabalho e a necessidade de conversão ao Islão para poder dar aulas.

Nada disto aconteceu em França, tanto em 2022, como em 2024, ainda que a bandeira francesa tenha sido por vezes minoritária entre as que se viram nos festejos dos apoiantes da Nova Frente Popular. Mas começa a haver judeus com receio de viver num país que assiste a manifestações em que milhares advogam festivamente a erradicação de Israel.

E no horizonte estão as Presidenciais de 2027, às quais Macron não se pode recandidatar, e em que o ferozmente anticapitalista Jean-Luc Mélenchon pode muito bem aparecer como o mal menor entendido como necessário para travar Marine Le Pen pela terceira vez. E não deixa de ser irónico, quase numa escala houellebecquiana, que tal cenário se torne tanto mais provável quanto maior for o grau de exclusão da França Insubmissa no rescaldo destas Legislativas.


Grande repórter do Diário de Notícias

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