Hospitais Universitários: a árvore e a floresta
O Sistema Nacional de Saúde (SNS) foi provavelmente a maior conquista da nossa democracia. O direito à saúde está inscrito na Constituição. Estão lá muitos outros (educação, justiça, habitação, etc.), mas a saúde é especial. Os outros mexem com a nossa existência quotidiana. Este é o que nos permite estar vivos para que os outros possam ter algum significado.
Creio não ser rebatível que a formação de profissionais de saúde competentes tem de ser feita num quadro de exigência máxima, ancorada em Hospitais Universitários. É lá que a ligação à academia deve ser mais forte, onde deve haver investigação clínica e inovação. E é lá que se cuidam das situações mais graves e mais diferenciadas (não se fazem, nem se aprende a fazer transplantes em Centros de Saúde).
Sendo clara a importância dos Hospitais Universitários (a árvore) para o país, passemos para o SNS (a floresta). Projetar o futuro sem olhar para o passado não costuma ser uma boa prática. A situação atual reflete um conjunto de medidas desconexas, reativas, e sem que tivesse sido acautelado o futuro.
Houve um momento em que a rede de prestação de serviços de saúde se baseava nos Centros de Saúde (CS), Hospitais Distritais (HD) e Hospitais Centrais (HC). Muitos CS tinham associados Serviços de Urgência que eram locais de proximidade e de triagem para que apenas fosse para os Hospitais superiores quem necessitava.
Primeiro fecharam os Serviços de Urgência associados aos CS. Resultado imediato, os doentes passaram a ir para os HC e HD. A seguir, também se foram fechando paulatinamente CS, agravando a situação. Os próprios Hospitais Distritais foram-se debatendo com problemas estruturais e de pessoas. Curiosamente, durante todos esses anos o denominador comum era a falta de médicos (a raiz do problema).
Os anos foram passando e, a seguir ao desgaste provocado nos HD, seguiram-se os Hospitais Centrais (fim de linha). Curiosamente, com o declínio generalizado do SNS, somos confrontados com o florescimento da saúde privada. Aí, pelos vistos, não faltam médicos.
Perante a escassez, decide-se enveredar por uma medida de gestão usual (ganhos de escala), criando-se as Unidades Locais de Saúde (ULS). Na prática, esta medida dispersa os médicos pelo território.
Esta dispersão dos médicos diferenciados diminui a capacidade de resposta dos nossos hospitais, incluindo os Centrais, comprometendo a formação de qualidade e o tratamento de doentes críticos. E sim, finalmente, depois de destruído o SNS, constata-se que afinal é necessário formar mais médicos (provavelmente para irem para os privados ou para emigrarem).
Para a Região Centro, a mais envelhecida do país e onde residem cerca de 2 milhões de pessoas, o desmantelamento dos Hospitais da Universidade de Coimbra é inaceitável. As pessoas estão a ser empurradas para as unidades privadas, tendo como alternativa deslocarem-se ao Porto ou a Lisboa. De três Hospitais Centrais (Porto, Coimbra e Lisboa), passaremos à bicefalia do costume.
E para que fique claro, sou favorável à iniciativa privada. Não aceito é que um direito constitucional seja violentado de forma tão clara, ostensiva e despudorada. Pedir a quem ganha miseravelmente que pague para ter acesso a cuidados de saúde é a linha vermelha onde a nossa democracia nunca devia ter chegado e que, muito menos, deverá alguma vez atrever-se a ultrapassar.