Hoje vou chatear-vos com o Camões 

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Começo por citar Manuel Alegre, numa entrevista que lhe fiz em vésperas do Dia de Camões, em que falou do poeta-soldado: “é o primeiro grande poeta europeu que vai também ao encontro de outros povos e de outras culturas. Para além da cultura extraordinária que ele tem, porque sem a cultura que ele tem não se pode escrever Os Lusíadas, Camões conhecia os gregos, os latinos, conhecia isso tudo. Conhecia a geografia, conhecia aquilo que nessa altura se sabia mesmo sobre a ordem do mundo. Ele viaja o poema, e adquire conhecimento com esses contactos. É o primeiro poeta europeu que vai realmente ao encontro do mundo, das sete partidas no mundo. E isso dá-lhe uma dimensão verdadeiramente universal. Outra coisa ainda, é que os heróis de Os Lusíadas, ao contrário dos heróis de Homero e de Virgílio, não são heróis fictícios, nem inventados. Os heróis de Os Lusíadas são heróis de carne e osso. É o povo. É o Gama, mas é o povo. É o povo português”. 

Sim, foi um homem extraordinário Luís Vaz de Camões, nascido faz 500 anos. E cada vez mais sinto fascínio pela figura. De repente, dou por mim a relembrar-me que ao longo destas três décadas no Diário de Notícias várias vezes me fui cruzando com o poeta. Há muitos anos, entrevistei o galês Landeg White, professor na Universidade Aberta, que traduziu Os Lusíadas para inglês, com direito a publicação nos Oxford World Classics. Não foi a primeira tradução inglesa, pois há, por exemplo, uma famosa de Richard F. Burton no século XIX, mas a de White foi celebrada como a mais bem conseguida. Por curiosidade, transcrevo aqui a sua versão da primeira estrofe: “Arms are my theme, and those matchless heroes/ Who from Portugal’s far western shores/ By oceans where none had ventured/ Voyaged to Taprobana and beyond,/ Enduring hazards and assaults/ Such as drew on more than human prowess/ Among far distant peoples, to proclaim/ A New Age and win undying fame.”

O professor White não hesitou, nessa nossa conversa, talvez em 2001, em classificar o português como “o primeiro poeta universal”, pela obra, mas também pela vida. O genial William Shakespeare nunca terá saído de Inglaterra, o espanhol Miguel de Cervantes, outro génio da literatura, combateu em Lepanto e foi espião em Argel, mas o seu mundo foi o do Mediterrâneo. Camões, esse, navegou pelo Atlântico, Índico e Pacífico. Ter morrido em 1580 nessa mesma Lisboa onde nasceu é quase uma improbabilidade. 

Bem mais recentemente, em 2022, e a coincidir com os 450 anos da edição de Os Lusíadas, percebi que a epopeia tinha sido traduzida pela primeira vez para árabe e para turco, mérito de Abdeljelil Larbi e de Ibrahim Aybek. Entrevistei ambos, e se o tunisino, professor da Universidade Nova de Lisboa, não sentiu constrangimentos na tradução das palavras duras de Camões com o Islão, já o turco, um antigo trabalhador humanitário que vive em Portugal e tem estudado muito a nossa história, optou por um ligeiro sinal gráfico nas palavras ofensivas para Maomé, uma forma elegante de reafirmar o respeito pelo profeta sem desvirtuar o texto original.

Neste exercício de memória jornalística, não posso deixar também de referir a conversa com Olga Ovtcharenko, que em 1988, ainda no tempo da União Soviética, publicou a primeira tradução russa integral e direta de Os Lusíadas. Houve uma outra tradução, de Mikhail Travtchetov, mas por causa da Segunda Guerra Mundial e da morte do poeta, só seria descoberta e publicada muito mais tarde, explicou-me a própria Ovtcharenko, quando a entrevistei em 2019, na Faculdade de Letras de Lisboa. A académica foi várias vezes bolseira em Portugal, estudando, investigando e ensinando, tendo sido leitora de russo na Universidade de Coimbra nos anos 1980. Quando lhe perguntei sobre a excepcionalidade de Camões, sublinhou que “não lhe faltava o engenho e o estudo, com muita experiência à mistura”.
Não convém esquecer a lírica camoniana, e nisto de andar atento ao que lá fora acontece em torno do nosso maior poeta, recordo uma entrevista à distância a Árpád Mohácsi, que fez uma tradução de sonetos para húngaro e que me disse que “Camões é um poeta de primeira classe, um dos melhores escritores de sonetos da literatura mundial, ao lado de Petrarca, Shakespeare e Ronsard”.

Sobre uma mesinha na sala de Manuel Alegre estava um livro para crianças que o poeta publicou há muitos anos e que agora voltou a gerar curiosidade: tem como título Barbi-Ruivo- o meu primeiro Camões e conta com ilustrações de André Letria. Mas coisa que não falta são as novidades editoriais sobre o autor de Os Lusíadas. Exemplos: Camões vida e obra, de Carlos Maria Bobone, Camões. Uma Antologia, de Frederico Lourenço ou, prestes a sair, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - Biografia de Luís Vaz de Camões, de Isabel Rio Novo. 

A Frederico Lourenço tenho a agradecer o muito que tenho aprendido sobre Camões nos textos que vai publicando na internet, seja a influência dos Argonautas em Os Lusíadas, nomeadamente na figura do Velho do Restelo, seja o arrojo, e aqui falamos da lírica camoniana, do soneto Endechas a Bárbara escrava, em que é feito o elogio da beleza negra. Manuel Alegre, aliás, não resistiu na entrevista a citar um trecho: “Pretos os cabelos,/Onde o povo vão/ Perde opinião/ Que os louros são belos.”

Das edições luxuosas às de bolso, não faltam Os Lusíadas para quem os queira ler ou reler. Confesso que aquilo que aprendemos na escola, a necessidade de analisar as estrofes, pode assustar, mesmo que a popularidade do poeta seja imensa, como o provam ditos populares como “vai mas é chatear o Camões”. Mas é tão bela a epopeia que vale a pena voltar a ela só pelo prazer da leitura. E atrevo-me a recomendar uma corajosa obra de Virgílio C. Dias, um ilustre camoniano que também já entrevistei para o DN. Trata-se de uma edição de Os Lusíadas onde a par da versão original dos dez Cantos surge uma em português atual, um trabalho que “demorou 13 anos, com uma dedicação, no mínimo, de quatro horas diárias”, contou-me Virgílio C. Dias, não escondendo o entusiasmo por  Camões, que considera “o poema maior da humanidade”.

Acabo esta homenagem a Camões por onde comecei: por Manuel Alegre. Faz sentido dar o nome do poeta ao novo aeroporto de Lisboa, como foi já anunciado, perguntei. E a resposta foi: “Bom, ele é o máximo símbolo nacional. Eu sou um devoto de Camões, portanto não vou pôr isso em causa. Mas Camões não precisa de ser o nome do aeroporto. Camões é Camões. Camões está identificado em cada um dos seus sonetos, em cada um dos seus versos e n’Os Lusíadas. Esses é que são os grandes monumentos onde está o nome de Camões.” 

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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