Habitação, "everyone says I love you", um refrão digno da Eurovisão
A Constituição Portuguesa, no seu Artigo 65º, estipula que «Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto [...]» e «O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria».
Passados 47 anos sobre a sua publicação, "é obra" que a Habitação continue na ordem do dia e protagonizada por quem, regra geral, tem 2-3 habitações; numa peleja entre "santos e pecadores", privados, Estado e afins (Santa Casa, desde logo), inquilinos e proprietários, sem que se vislumbre uma "construção" regulamentar una, clara e com resultado prático. Adiante.
Ele há o Programa de Arrendamento Acessível (2019) para o país, na "Nova Geração de Políticas de Habitação", e há estratégias avulsas pelas autarquias.
Lisboa, enquanto "locomotiva", lançou em 2018, com o Ministério do Trabalho e da Segurança Social, um Programa de Reconversão de Edifícios da Segurança Social, no qual se comprometeu a reconverter 11 edifícios do MTSS em zonas nobres da cidade (4 na Av. República, 1 na Av. Visconde Valmor, 2 na Av. E.U.A., 2 em Entrecampos e 1 na R. Rosa Araújo) e a criar 250 apartamentos de renda acessível e uma residência para estudantes (2 edifícios de Norte Júnior, na Alameda D. Afonso Henriques, junto ao Técnico).
Um ano antes, a CML lançara o Programa de Renda Acessível, comprometendo-se a intervir, recorrendo a alterações ao edificado existente e à construção nova, no Alto da Ajuda, Benfica, S. Lázaro, Gomes Freire/Paço da Rainha e Parque das Nações no sentido de garantir casa acessível às "verdadeiras classes médias" (risos).
A juntar à festa de anúncios, a CML acrescentaria, entre 2016 e 2020, uns quantos pozinhos de perlimpimpim para, por ex., o terreno da Feira Popular (90 M€ para 5 lotes de 128 habitações de renda acessível, numa "obra que vai mudar o centro da cidade de Lisboa", a concluir em 16 meses, mais risos), Alto do Restelo (um projecto que previa 11 prédios paquidérmicos, depois reduzidos para 9 graças à mobilização da população, com 460 fogos de renda acessível, e agora já nem se sabe se irá avante; um projecto polémico à nascença por ser num terreno que era da EPUL e deveria ser um contínuo verde e não para construção em altura, ainda por cima numa parceria público-privada esquisita), Alto da Ajuda (em parceria com as "forças vivas" de uma cooperativa local ... 34 M€, para 119 habitações de renda acessível, "com uma magnífica relação visual com o estuário do rio Tejo e com o parque natural de Monsanto"), antiga pedreira do Alvito (investimento chinês para 87.000 m2 de habitação - 137 apartamentos serão de renda acessível -, 22 mil de escritórios e 11 mil de retalho, 900 lugares de estacionamento, "um projeto estruturante para a regeneração do Vale de Alcântara, um dos projetos com escala tão necessários para reter a classe média portuguesa na cidade" (sorrisos amarelos), o quartel da GNR de Cabeço de Bola (edifício da ESTAMO, obra a financiar pelo Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, para a construção de 240 fogos para arrendar a preços acessíveis, um imenso lote, por sinal paredes-meias com os prédios camarários englobados no PRA autárquico) e o Hospital Miguel Bombarda (também da ESTAMO, num loteamento a meias com o Ministério das Infraestruturas e da Habitação, de que há novo pedido de informação prévia, que prevê a construção de 3 prédios para renda acessível, com 6 a 8 pisos, junto (!) ao "Panóptico", Imóvel de Interesse Público).
Contudo, em Lisboa estão prontos a habitar, ou quase, apenas os edifícios da Segurança Social da Av. República, Visconde de Valmor e Alameda. O que é bom, mas muito pouco, sobretudo para tanta prestidigitação, mesmo que pelo meio tenha havido uma pandemia e se atravesse uma crise.
Pelo que antes de entrar a matar nos privados (não é que os fundos imobiliários e os Vistos especuladores não o mereçam, mas o pequeno e médio proprietário, não), o Estado - os vários Ministérios e afins, entre eles o "instituto público" da SCML, mais as autarquias -, detentor de inúmeros edifícios ao abandono e a degradarem-se, deve evitar que se cumpra o provérbio "faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço". Exemplos:
O Ministério da Administração Interna é dono de uma fileira de edifícios pré-pombalinos na Rampa das Necessidades, abandonados e a degradar-se que, colocados no mercado de arrendamento, darão muitos T1 e T2 para arrendamento jovem ou residências universitárias (o ISA está do outro lado do vale). Aja em conformidade!
Do que está à espera a CML para, agora que se viu livre da leiloeira, recuperar o Palácio Marim-Olhão, adaptando-o habitação? A obra não será difícil, uma vez que o edifício tem várias entradas e escadas, e sempre se evitará a ida de mais um palácio (vão-se os anéis) a uma hasta pública inglória.
E o que se passa com a mega-empreitada de renda acessível anunciada para 11 edifícios camarários da Rua de S. Lázaro, entre os quais um imponente edifício "entre-séculos" (colado às antigas carpintarias) e um belo pombalino (defronte)? Dos onze, nem um está sequer em obras!
Ombreando com a CML, a SCML possui prédios devolutos e degradados com fartura, um pouco por toda a cidade, mas com especial enfoque nos bairros antigos. Prédios notáveis, há-os na R. Mª Andrade, Antero de Quental, Calçada do Lavra, Junqueira, etc. Tal qual a CML, também não sobram anúncios de mundos e fundos.
Finalmente, em relação aos privados e ao novo pacote de medidas pró-habitação, apenas três exemplos dos muitos e variados que chocam a cidade há demasiado tempo, e sobre os quais não será difícil ao Governo invocar o interesse público para intervir coercivamente:
O antigo hospital de Arroios, devoluto há 30 anos! Durante todo esse tempo nem Governo nem CML intervieram, antes deixaram andar. É um caso extremo de indigência de quem de direito, numa avenida central da capital (que a CML apelidou de "eixo central da reabilitação"), que dará um sem-número de habitações ou residências para estudantes, com espaço para jardim e tudo o mais. Será desta?
A outra escala, mas igualmente importante, um pequeno prédio carismático da Lisboa do Déco, com 12 apartamentos repartidos em "esquerdo e direito", com farto logradouro, num bairro consolidado, ao final da R. Arco de S. Mamede, devoluto e em estado especulativo pré-comatoso, juntinho ao histórico chalet de Frederico Daupiás, onde os "jardins de ensaio", e não a especulação desavergonhada, fizeram escola vai para mais de 100 anos, mas que se mantém sob aquela há mais de 30 anos.
Finalmente, o que dizer dos Inválidos do Comércio e do gigantesco complexo junto à Presidência do Conselho de Ministros, abandonado e cujo logradouro é ocupado pelas viaturas do pessoal daquela? Reabilitado e adaptado, daria "n" apartamentos e "n+1" residências de estudantes.
A Woody Allen, peço desculpas pelo abuso do título.