Há mais ONU além do veto

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O uso do veto pelos membros permanentes do Conselho de Segurança é “demasiado recorrente” e “por vezes até abusivo”, disse ontem Luís Montenegro em Nova Iorque aos jornalistas. E tem toda a razão o primeiro-ministro português nesta denúncia, pois em 79 anos raras vezes saíram do órgão mais poderoso da ONU decisões que resolvessem conflitos, pois cada potência dá prioridade à proteção dos seus aliados, como tem feito a Rússia, travando há mais de uma década qualquer resolução condenatória da Síria, ou como fazem os Estados Unidos tradicionalmente em relação a Israel.

Logo aquando da fundação das Nações Unidas, em 1945, o estatuto especial conferido aos cinco países vencedores da Segunda Guerra Mundial suscitou dúvidas aos restantes membros, que receavam  sobretudo que, quando qualquer um desses membros permanentes do Conselho de Segurança estivesse envolvido num conflito, o seu próprio veto travaria qualquer medida. Mas o que se tem passado, vai muito além disso, pois o veto protege o próprio, sim, mas também aqueles sob a sua proteção. Por isso Estados Unidos e União Soviética/Rússia destacam-se claramente em termos de veto, antes e depois do fim da Guerra Fria.  Reino Unido, França e China também têm, diga-se, um longo historial de utilização.

O clima de Guerra Fria que rapidamente se impôs a seguir à Segunda Guerra Mundial explica em grande medida a incapacidade crónica de os cinco grandes se entenderem para tentar resolver as crises do mundo, e não foi por acaso que a resolução que fez um ultimato em 1990 ao Iraque para retirar as suas tropas do Koweit aconteceu num ambiente internacional em que as duas superpotências já não sentiam obrigação de estar em lados opostos, e além disso Saddam Hussein não tinha grandes amigos nem em Washington, nem em Moscovo.

Também o percurso e personalidade de Muammar Kadhafi ajudarão a explicar a ausência de veto tanto da Rússia como da China (ambas se abstiveram) na resolução que levou ao ataque à Líbia em 2011 em socorro da oposição e que resultou na queda do regime e morte do coronel que governava aquele país árabe há 40 anos.

Curiosamente, a maioria das propostas para modernização do Conselho de Segurança passa mais por um alargamento do número de membros permanentes do que pela revogação do estatuto especial dos Estados Unidos, da Rússia, da China, do Reino Unido e da França. No fundo, os candidatos não estão dispostos a prescindir do direito de veto, o mais óbvio sinal de poder no sistema onusiano, hoje integrado por 193 países, que vão desde a superpopulosa Índia (a mais óbvia candidata a uma posição igual à dos cinco grandes) ao minúsculo Tuvalu.

Portugal, que é candidato para o biénio de 2027-2028 a ser um dos dez membros não-permanentes no Conselho de Segurança, defende uma atualização do número de membros permanentes, com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, a esclarecer que no discurso que fará perante a Assembleia-Geral Montenegro irá defender o alargamento a dois países africanos, mais a Índia e o Brasil. A posição diplomática portuguesa desde há muitos anos sobre uma eventual reforma do Conselho de Segurança é clara sobre a Índia e também sobre o Brasil, mas deixa aos países africanos a decisão sobre os eventuais representantes, com os países mais óbvios a serem Nigéria, Etiópia e Egito, mas não é difícil imaginar que outros, como a África do Sul, tenham argumentos a apresentar.

Não sendo, porém, provável que a reforma do Conselho de Segurança aconteça, nem por via do alargamento do número de membros permanentes nem por via do fim do direito de veto, não nos deixemos fixar nas discussões bizantinas do seu órgão mais poderoso sobre a Ucrânia ou Gaza para desacreditar a ONU. Com todos os defeitos que tem, é o único fórum onde todos falam com todos e os pequenos têm possibilidade de se fazer ouvir. Além disso, nunca me canso de relembrar, sem as campanhas de vacinação da OMS, o apoio aos refugiados pelo ACNUR ou a ação da UNICEF o mundo seria certamente muito pior.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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