Há aqui uma coisa que já começa a ser desagradável
Sim, pareceria claro que não se pode, enquanto presidente de câmara, entregar 300 mil euros a um promotor imobiliário e ver o tempo passar, nada acontecer, nem pavilhão, nem casita, nem uma tenda, pelo menos, e nada fazer sobre o assunto, a não ser quando ele chega aos jornais.
Sim, pareceria também claro que dois secretários de Estado não podem vir em público menorizar o seu ministro e contrariar as suas intenções políticas, puxando para si e para os seus pés enregelados, neste tempo de começo de frio, essa manta, essa grande manta (de tecido, não das profundezas abissais), que se chama o nome do primeiro-ministro, para os confortar nessas pequenas canalhices que, toda a gente sabe - especialmente os secretários de Estado -, só se fazem em privado e nunca em público, a não ser quando se quer mandar a roupa de cama toda ao chão e recomeçar de novo, com o lençol de baixo bem esticado, a maçada de mudar a fronha e sempre a boa da manta por cima.
E sim, pareceria igualmente cristalino que o primeiro-ministro e o ministro das Obras Públicas deveriam ter sido mutuamente solidários e publicamente decentes na apresentação de uma decisão para um novo aeroporto em Portugal, privando os portugueses da sua novela acastelhanada, que em tempos só seria admitida entre homem e mulher, mas que, agora, felizmente, pode ser homoafetiva, mas que, infelizmente, apenas demonstrou que o primeiro-ministro, quando se engana, esgatanha tudo e todos para parecer que acerta, e que o ministro, quando acerta, esgatanha tudo e todos para parecer que se engana.
E pois, do mesmo modo, pode não ser imediatamente percetível como uma Lei de Incompatibilidades de Titulares de Cargos Públicos, que foi alterada em 2019 por a anterior ser, afinal, pouco clara nas incompatibilidades que atirava ao lombo público dos titulares, continua em 2022, a ser pouco clara nas incompatibilidades que fixa, talvez sim, talvez não, venha a redução teleológica, o parecer da Procuradoria-Geral, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e mais quem queira assumir o andor.
E, pois, num país normal uma ministra não deveria responder a uma confederação representativa do setor que tutela que, se se queixam, talvez devessem ter votado no mesmo partido de que a mesma ministra padece ou, pelo menos, não aconselhar a não votar no dito, o que me parece alto critério público para ser apresentado como justificação no contexto de uma discussão sobre atrasos de entregas de apoios a agricultores em virtude da seca - logo a seca e os agricultores, duas coisas absolutamente sazonais entre nós.
Enfim, agora que veio o frio e a chuva e o quase inverno, talvez a silly season possa acabar no espírito de quem por cá manda, até porque há aí uns detalhes, tipo guerra, inflação, empobrecimento, dificuldade em pagar contas e empréstimos, que, se calhar, merecem gente mais - como a conversa da moda gosta de chamar - focada. E não apenas focada em focarem-se uns aos outros.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa