Não escondo a minha surpresa pela incursão dos rebeldes sírios em Aleppo, a segunda cidade do país. Partiram da província de Idlib, o seu último refúgio, garantido por uma espécie de acordo de cessar-fogo em 2020 entre turcos e russos, uns padrinhos da oposição e os outros do Governo de Damasco. Estive no ano passado nesse recanto rebelde da Síria, numa zona montanhosa junto à fronteira com a Turquia, uma terra árida, de rochas esbranquiçadas, praticamente sem sinais de vegetação. E se o Exército Sírio Livre controlava a passagem fronteiriça de Bab Alhawa, a maior parte do território estava nas mãos do Hayat Tahrir Al-Shams, uma nova designação para a Frente Al-Nusra, muitas vezes descrita como um ramo da Al-Qaeda. .Homens de longa barba, armados com metralhadoras, eram visíveis nos pontos estratégicos. Nas estradas passavam mais motos do que carros, e nelas muitas vezes apinhavam-se famílias de três ou quatro pessoas. As mulheres invariavelmente vestidas de negro, com o rosto coberto pelo niqab. Os efeitos do terrível terremoto de inícios de 2023 era ali menos evidente do que na Turquia, apesar de quase dez mil mortos, pois quase não havia casas para desmoronarem, só tendas e outras habitações improvisadas. O mais parecido que vi com uma cidade, depois de passar Sarmada e começar a subir a encosta, foi Meshed Ruhin, um conjunto de casas de tijolos cinzentos construída pela AFAD, a agência de Proteção Civil da Turquia. Uma escola, uma mesquita e um hospital ajudavam a dar um ar de normalidade ao sítio, apesar de tudo um quase oásis numa província que antes da guerra tinha um milhão de habitantes e agora terá cinco..Tudo começou ali também em 2011, mas no caso da Síria a Primavera Árabe não fez cair o ditador. O líbio Muammar Kadhafi foi morto, o egípcio Hosni Mubarak foi preso e o tunisino Ben Ali teve de fugir, mas Bashar Al-Assad mantém-se até hoje no poder, passados 13 anos. Morreram meio milhão de sírios, sete milhões são deslocados internos (muitos em Idlib) e seis milhões refugiaram-se no estrangeiro, boa parte na vizinha Turquia. .É uma guerra civil, entre sírios, mas também uma guerra de alcance global. Os turcos vieram em apoio dos rebeldes e contra os movimentos curdos com ramificações na Turquia, os russos e os iranianos socorreram o governo, o Hezbollah também, os americanos (que têm ainda uma base no sul) e outros ocidentais intervieram sobretudo para contrariar o Estado Islâmico, que chegou a controlar partes do país, tal como do Iraque. De início, tratou-se de protestos pacíficos contra o domínio de uma família, os Al-Assad, e de um grupo étnico, os alauitas, mas a repressão cega que o regime escolheu como resposta gerou uma rebelião armada, em que os laicos depressa foram suplantados pelos islamitas, muitos deles ligados a redes como a Al-Qaeda e o próprio Estado Islâmico..Nunca se chegou, de facto, à paz, mas desde 2020 parecia que os dois lados aceitavam um congelamento da linha da frente. Os rebeldes davam a ideia de não ter força para uma contraofensiva, o Governo dava-se por satisfeito por controlar o essencial do país, nomeadamente a costa e as grandes cidades como Damasco e Aleppo. Os próprios intervenientes estrangeiros passaram a ter nos últimos tempos preocupações maiores, nomeadamente a Rússia em guerra na Ucrânia e o Irão à beira de uma escalada com Israel. Aliás, a guerra só dava sérios sinais de existir quando Israel atacava alvos iranianos ou do Hezbollah, suspeitos de estarem na Síria com duplas intenções. Ainda ontem, a aviação israelita bombardeou uma tentativa de passagem de armas para o Líbano, destinadas ao Hezbollah..A resposta do regime de Damasco à incursão rebelde em Aleppo não se fez esperar depois de um primeiro momento de fraqueza e retirada, com os aviões russos a largarem bombas. O Irão, que vê na Síria um aliado decisivo desde os tempos de Hafez Al-Assad (pai de Bashar), declarou já todo o apoio aos governantes de Damasco, pois não admite ver enfraquecido mais um aliado depois dos estragos que os israelitas fizeram no Hamas em Gaza e no Hezbollah no sul do Líbano. .Quem está a mexer os cordelinhos? Serão os rebeldes derrotados e remetidos para o bastião de Idlib, ou finalmente eliminados? Ou teremos um reacender da guerra civil síria, comprovando que o Médio Oriente tanto é um barril de pólvora como permanente caixinha de surpresas?