Goucha, telelixo e palmatória

Num debate sobre populismo e a ascensão da extrema-direita, o apresentador da TVI admitiu-se arrependido de ter recebido um criminoso nazi no seu programa matinal. Um arrependimento que surge quatro anos e meio e muita promoção de discursos e personagens populistas depois - e que passa ao lado do essencial: o efeito comprovado do telelixo na democracia.
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"Foram 15 minutos que me perseguem até hoje". A frase é de Manuel Luís Goucha, num debate sobre "o papel dos media perante a ascensão da direita radical e populista" que decorreu numa recente entrega de prémios de jornalismo.

Goucha referia-se ao facto de em janeiro de 2019 ter recebido, no seu programa matinal de entretenimento, um criminoso nazi dono de um cadastro que começa aos 17 anos com a brutal agressão em grupo, motivada por ódio racial, de cinco cidadãos negros na noite de 10 de junho de 1995 - a noite em que, segundo ficou provado em tribunal, vários membros desse mesmo grupo mataram à pancada o português negro Alcindo Monteiro - e que continua, quase 30 anos depois (ainda este mês o DN noticiou mais uma), a averbar condenações por crimes violentos, por posse de armas proibidas, discriminação racial e incitamento ao ódio, as quais lhe valeram já quase 10 anos atrás das grades.

Se em 2019 refutara calorosa e indignadamente, quer na própria TVI quer em entrevistas e no Facebook, todas as críticas, incluindo aquelas que o verberavam por ter permitido ao criminoso o branqueamento dos seus crimes e até apresentar-se como "vítima da justiça" e de "censura" - "Desenrolou-se aqui uma conversa com os pontos de vista do convidado e os nossos em jeito de contraditório. Fomos muito contundentes. Eu usei dados, usei a história. (...) Foi uma oportunidade de ouro para confrontar argumentos e ideias. Chama-se a isso viver em democracia (...)", disse na altura Goucha, chegando mesmo a falar do perigo da "ideologia do politicamente correto" -, o apresentador veio agora reconhecer que os críticos tinham razão.

"Hoje dou a mão à palmatória: uma conversa daquelas não cabe num programa magazinesco. Porque se perde entre uma canção e um tema avulso, quase supérfluo, como uma receita de gastronomia. Não houve uma peça de enquadramento, para dizer quem é aquele homem e porque é que já esteve na prisão."

Soube destas declarações pela coluna de opinião de Bárbara Reis, no Público, que aplaudiu o facto de o homem a quem apelida de "rei das manhãs da TV portuguesa" ter certificado publicamente o seu arrependimento.

É decerto importante reconhecer erros, sobretudo se se tratar de verdadeiro reconhecimento e se refletir numa mudança de comportamento. Ora vão-me desculpar mas este pedido de desculpas - é isso que é suposto ser, certo? - não me convence.

Desde logo porque o branqueamento da realidade criminosa da pessoa Mário Machado começou logo com o post que Goucha publicou no seu Facebook, em anúncio da respetiva presença no programa, apresentando-o como mero "autor de declarações polémicas". Continuou, como já referido, na forma como, arrogante e ignaramente, continuou a defender aquilo que designava como "um debate" entre Machado e ele, quando o que ocorreu foi uma amena e sorridente conversa na qual o criminoso debitou uma série de mentiras repelentes e caluniosas sem qualquer contraditório por parte de Goucha e do outro interveniente, apresentado como "o repórter Bruno Caetano" (já lá iremos).

E ainda porque, apesar de ter na altura certificado que o convite ao criminoso nazi Mário Machado não tinha sido responsabilidade sua mas do tal "repórter", anunciava na semana seguinte, no seu Facebook, e quando Bolsonaro acabava de tomar posse como presidente do Brasil, ter convidado o então ​​​​​​​eminente bolsonarista e recém-eleito deputado federal Alexandre Frota - que no Twitter publicava, dando loas, vídeos mostrando cadáveres ensanguentados de alegados "bandidos" (negros) mortos pela polícia do Rio de Janeiro, falando de direitos humanos como de uma doutrina "esquerdista" a abater.

Frota acabaria por não comparecer no programa. Mas a bonomia (chamemos-lhe assim) de Goucha face ao populismo radical e aos discursos de extrema-direita não se ficaria por estes dois casos. Pouco depois passou a ter no seu programa, como comentadora "criminal" residente, a advogada Suzana Garcia, que ali se notabilizou por um discurso de ataque aos movimentos antirracistas, os quais chegou a ali designar por "essa gentalha" e "pessoas oportunistas que nunca souberam o que é trabalhar", de defesa incondicional do securitarismo policial e de penas como a castração química e até física.

Graças a esse discurso, e à rampa de lançamento proporcionada pela TVI e por Goucha, Garcia seria, segundo a própria, convidada pelo partido de extrema-direita para o representar nas eleições autárquicas de 2021, acabando por aceitar outro convite, o do PSD, para ser candidata à Amadora, concelho com elevada percentagem de população de origem africana, prometendo torná-la "mais segura" e "uma Singapura" (país no qual vigora uma democracia autoritária hiper-securitária, com penas corporais e alta taxa de execuções).

Garcia, cuja campanha colocou um cartaz em Lisboa em frente à Assembleia da República, ameaçando fazer "o sistema tremer" - emulando assim o tipo de retórica populista e anti-democrática do partido de extrema-direita (em relação ao qual, aliás, recusou qualquer "cerca sanitária") - convidaria Goucha para presidir à sua comissão de honra, convite que o apresentador aceitou e que só pode ser interpretado como uma identificação (ou, pelo menos, com uma não demarcação) face ao estilo e ideias da candidata.

Há mais, porém. No citado "mea culpa", Goucha disse: "Permitam-me que ache que um Mário Machado tem cabimento numa conversa longa num programa da noite, num programa informativo, para se combater as suas ideias. É no palco do mediatismo televisivo ou no placo de uma entrevista na imprensa que se combatem os argumentos."

Começamos por constatar que o apresentador continua, este tempo todo depois, a considerar que é profícuo e desejável "debater" com um criminoso nazi, e "numa conversa longa". Quiçá para lhe perguntarmos por que motivo considera que os brancos são superiores, ou que Hitler era uma pessoa incrível, ou por que passa a vida a incitar ao ódio e a ser apanhado com armas em casa. Tudo questões que o país anseia ver respondidas.

Porém podemos igualmente questionar por que motivo, se Goucha está tão preocupado com o papel dos media no combate ao populismo, promoveu no seu programa, como "repórter", um indivíduo - Bruno Caetano - que não tem carteira de jornalista e como tal está impedido de se apresentar como alguém que pratica jornalismo. Não é certamente a participar na contrafação do jornalismo como profissão com exigências de rigor e deontologia e que, pelo reconhecimento da sua importância para a democracia, é regulada por lei especial, que Goucha contribui para aquilo que nas declarações citadas preconiza como papel salvífico dos media.

Com a sua idade e percurso, e não sendo uma pessoa destituída, Manuel Luís Goucha tem mais que obrigação de saber o que andou a promover e facilitar nos últimos anos. Aliás, caso estivesse mesmo interessado no que diz preocupá-lo, deveria ter até já reparado na existência de estudos científicos que comprovam como o telelixo e o tabloidismo - que a estação onde trabalha tão afincadamente pratica - favorecem a votação em candidatos e em ideários populistas. Mas isso já era pedir de mais, não era?

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