Gametas e embriões desperdiçados A(gosto)

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À semelhança da esmagadora maioria dos países desenvolvidos, Portugal está envelhecido. A renovação de gerações está muito longe de assegurada, com a pirâmide etária invertida há décadas, existindo actualmente bem mais idosos do que jovens.

Esta prevalência da faixa etária mais velha poderá ser motivada por diferentes factores: o aumento da esperança média de vida; situações em que os casais, na sua liberdade, não desejam ter filhos; ou baixas taxas de natalidade em virtude de circunstâncias económicas, laborais, sociais e (o maior tabu de todos) de saúde.

Os dados mostram que a infertilidade tem aumentado em Portugal. Esta tendência não será necessariamente consequência de patologias clínicas mais ou menos conhecidas do casal aquando do planeamento da concepção, mas sim, pelo facto de os casais terem filhos cada vez mais tarde. Este retardar do processo reprodutivo tem um impacto considerável na qualidade dos gametas (óvulos e espermatozoides), com maior prevalência nas mulheres, em particular, a partir dos 35 anos de idade.

Felizmente, os avanços científicos e tecnológicos permitiram apresentar uma alternativa aos que, desejando ter filhos, se encontravam impossibilitados de concretizar esse desejo. Apesar dos tratamentos de procriação medicamente assistida serem uma realidade há quatro décadas, infelizmente, a capacidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em dar resposta aos pacientes que procuram uma solução junto do sector público de saúde em Portugal está longe da ideal.

Por um lado, atendendo à diminuição da qualidade dos óvulos com o passar dos anos, a idade máxima com que uma mulher pode aceder aos tratamentos no SNS está fixada nos 40 anos de idade.

Outra razão está relacionada com assimetrias territoriais - o Alentejo, o Algarve e a Região Autónoma dos Açores não têm qualquer centro público de procriação medicamente assistida. Consequentemente, quem pretenda procriar utilizando um método alternativo terá de deslocar-se centenas de quilómetros para aceder a um tratamento demorado e sem certezas quanto ao seu sucesso.

Por último, e não raras vezes decisivo, os tempos de espera. Actualmente, quer para os gametas masculinos, como para os femininos, o tempo de espera atinge os três anos e meio. Ora, um casal em que a mulher esteja perto dos 37 anos de idade e pretenda iniciar o tratamento de procriação medicamente assistida, sabe de antemão que a viabilidade de o conseguir efectuar antes dos 40 anos é baixa - não esquecendo que, mesmo que o consiga realizar em tempo útil, o tratamento tem elevadas taxas de insucesso associadas. 

Sem grande surpresa, atendendo à diminuição exponencial da qualidade dos serviços públicos em Portugal, as famílias com mais recursos tendem a procurar este tratamento no sector privado. Esta escolha (para os que a podem fazer) não advém exclusivamente da maior celeridade na resposta oferecida pelos prestadores privados, mas, em particular, devido à idade máxima com que a mulher pode aceder aos tratamentos ser de 50 anos - em comparação com os 40 anos no sector público. Paralelamente, a oferta e cobertura territorial no privado é largamente superior, o que possibilita que mais tentativas deste tratamento possam ser realizadas sem causar transtornos significativos no dia-a-dia dos pacientes.

Segundo o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, os nascimentos resultantes de procriação medicamente assistida representam hoje mais de 4% da natalidade absoluta no nosso país - o equivalente a cerca de 3500 nascimentos por ano. Actualmente os centros públicos de procriação medicamente assistida são responsáveis por menos de um terço da totalidade dos tratamentos efectuados, o que resulta, naturalmente, da progressiva resignação dos pacientes com o SNS e a respectiva escolha pelo sector privado.

Nos últimos dias foi noticiado que milhares de gametas e embriões armazenados nos centros de procriação medicamente assistida seriam descongelados em Agosto, tornando-se, portanto, inutilizáveis - isto apesar das pessoas em lista de espera ascenderem a várias centenas.

Esta decisão decorre de uma alteração legislativa datada de 2019 que introduziu o fim do anonimato para a doação de gametas e embriões e previa um período de transição durante o qual o material genético poderia continuar a ser utilizado pelos centros de procriação medicamente assistida. Contudo, esse período de transição termina, precisamente, neste mês de Agosto.

Esta alteração legislativa não é explícita quanto à obrigatoriedade da destruição do material genético e prevê-se que cada centro de procriação medicamente assistida possa tomar uma decisão relativamente ao material armazenado antes da alteração da lei. Atendendo à importância que tem para a natalidade portuguesa, poderá especular-se que a maioria das direcções opte pela sua preservação em detrimento da sua destruição.

Se o material genético necessário para este tratamento for efectivamente inutilizado quando este é, já por si, extremamente burocrático, demorado e dependente de doações - que têm diminuído substancialmente desde o fim do anonimato -, então criar-se-ão cada vez mais obstáculos para que os que necessitam de recorrer a estes tratamentos consigam, efectivamente, concretizar o seu desejo de ter filhos.

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