FP25: a verdade exige reparação
No livro recentemente publicado, Presos por Um Fio - Portugal e as FP-25 de Abril, o autor, Nuno Poças, parte de uma perplexidade: o desconhecimento enraizado na sociedade portuguesa do que foi a ação das FP25, que perpassa todas as gerações. Uns esqueceram, outros nunca chegaram a saber. Pertenço a estes últimos. Nascida em 1974 tinha 6 anos quando as FP25 começaram a aterrorizar o país e já tinha 12 quando o julgamento decorreu. Mas se tenho memórias políticas muito fortes desse tempo, das FP25 só uma vaga referência. Até conhecer o Manuel Castelo-Branco, filho de Gaspar Castelo-Branco, diretor-geral dos Serviços Prisionais cobardemente assassinado à porta de casa em 1986. Mas poucos se cruzarão com o Manuel ou as irmãs ou com outros familiares e amigos das vítimas das FP25 e poderão perceber, na primeira pessoa, como este é um episódio da nossa história que precisa de ser revisitado.
Nuno Poças tem o mérito de explicar com objetividade, rigor e um detalhe inédito a ação terrorista das FP25 no início dos anos 1980. Enquadra nacional e internacionalmente o nascimento das FP, peça essencial e secreta do "Projeto Global", inconformado com o desfecho do 25 de Novembro e a democracia que então dava os primeiros passos. Explica os objetivos revolucionários deste projeto, os grupos, as forças políticas envolvidas, conhecidas ou clandestinas, as pessoas, as tendências e dissidências. Conta com dia e hora as várias ações: homicídios, ofensas à integridade física, roubos. Depois relata com pormenor o julgamento, as questões processuais, os avanços e recuos. Explica a forma como a sociedade, o poder político e as instituições de então lidaram com o tema. Expõe com lucidez o contexto em que tudo se desenrolou, permitindo ao leitor formar a sua própria opinião. Ao longo to texto também expõe a sua, não a esconde numa isenção disfarçada. Estudou os factos e retirou as suas conclusões com a distância da sua juventude - nasceu apenas em 1985, quando as FP25 já estavam perto de encerrar forçadamente a sua ação - e a lente da sua formação profissional de advogado.
Este livro ajudou-me a perceber como o outro lado da história tem estado profundamente oculto. Nos seus detalhes, no seu rigor e procura de revelar informação, revela com evidência dois pontos: a justiça fez o seu trabalho, a política portou-se mal. Choca em particular a disparidade de tratamento, a amnistia, a aceitação e as condecorações aos terroristas, de um lado, o esquecimento das vítimas, do outro. A duplicidade de critérios é gritante.
Há escassos meses assistíamos, e bem, à fixação de uma indemnização pelo assassinato repugnante de Ihor no aeroporto de Lisboa. Um ano antes foram arbitradas indemnizações dignas às vítimas e familiares dos terríveis incêndios de 2017. Comparem-se os valores com os fixados para os familiares das vítimas das FP25. Cobrem-nos de vergonha. Vítimas que o Estado não conseguiu proteger, familiares que depois não soube consolar. Fiquei sem qualquer tipo de dúvida de que hoje, em 2021, quando o 25 de Abril acabou de completar 47 anos, há um tema para tratar e uma reparação para acontecer. O espírito de Abril exige-o.
O nosso passado coletivo continua a ter episódios que precisam de ser (re)descobertos, debatidos e integrados. Ainda que isso implique avivar memórias e salgar feridas entreabertas. Este é um deles e temos de agradecer a Nuno Poças o seu contributo. Pior é o esquecimento, a ignorância e a indiferença. Porque mais cedo ou mais tarde haveremos de ter de olhar esse passado de frente, e é bom que com ele estejamos reconciliados.
Professora da Nova School of Law. Coordenadora do Mestrado em Direito e Economia do Mar