Fogo: negligência, doença mental e cobardia

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Como sucede todos os anos por esta altura, o país arde. Apesar de todo o dinheiro despejado ciclicamente no tema, é impossível conter os incêndios florestais. Apesar de todos os apelos à prevenção e diligência das pessoas, continua-se alegremente, por exemplo, a lançar foguetes em plena época de calor, com o devido acicatar acrescido em época de autárquicas. Seria interessante, aliás, mudar a data das eleições autárquicas para março e ver se haveria efeito no número de incêndios florestais no verão anterior!

Segundo se lê em www.florestas.pt, usando dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, “as causas intencionais representam entre 20%-30% do número de incêndios, mas constituem entre 40%-50% da área ardida. A negligência representa entre 50-60% dos incêndios, mas entre 30%-40% de área ardida”. As causas naturais representam apenas uma pequena percentagem dos incêndios florestais. Em 2018, por exemplo, 20% dos incêndios com causas apuradas tiveram causas intencionais e apenas 1% teve causa natural... Já a negligência foi a origem de 69% dos incêndios florestais.

Portanto, há dados e há conhecimento. O que é feito com ele?

Sabe-se, afinal, que o foguetório de verão, o uso de máquinas agrícolas e as queimadas causam grande parte dos incêndios florestais. Depois, muito depois, vêm os incendiários intencionais da floresta, tipicamente com quadros de doença mental e de alcoolismo: estes são “na maioria indivíduos do sexo masculino e com idade compreendida entre os 33 e os 46 anos. (...) A presença de quadros psicopatológicos neste grupo de ofensores é particularmente prevalente, sendo as perturbações de comportamento, mais concretamente a dependência alcoólica, o tipo de perturbações mais comum. As perturbações de desenvolvimento, nomeadamente défices no desenvolvimento cognitivo e dificuldades de aprendizagem, surgem também com relevo nesta população criminal. Uma parte significativa da amostra de incendiários desconhecia o proprietário do terreno, edifício ou habitação alvo do crime de incêndio, agindo sem qualquer tipo de motivação aparente” - lê-se na tese, de 2020, de Lígia Silva, O perfil do incendiário português: estudo comparativo entre o incendiário florestal e o incendiário urbano.

No entanto, todas as atenções, nomeadamente mediáticas, concentram-se nestes criminosos intencionais, não nos outros, os criminosos negligentes, o que é, no mínimo, desproporcional e contrafactual.

Temos muito mais área florestal ardida em proporção do que os demais países do sul da Europa, o que também não parece causar nenhuma mudança decisiva de hábitos. Quando estes não mudam pelo mero apelo ao bom senso, é a lei - e especialmente a sua aplicação - que deve atuar. É preciso, para tal, contrariar coisas que santificamos, como a propriedade privada. É preciso cortar muitas árvores. No meio das matas, em torno das estradas, em redor das aldeias, nos quintais e jardins de casas. Toda a gente sabe que é impossível combater incêndios, que existirão sempre, sem acessos, sem limpezas e sem descontinuidades na floresta.

É preciso tomar decisões impopulares, que vão tornar descontentes milhares de pequenos proprietários, que, se calhar, nunca foram àqueles 2000 metros quadrados de árvores e silvas que a lei lhes diz que são seus, mas sentem, por algum motivo, que é exatamente ali que está o fundamento telúrico da sua existência...

É preciso também exigir indemnizações aos causadores negligentes dos incêndios: o autarca que não aplica a lei, o presidente da comissão de festas que lança os foguetes, o agricultor que queima ou usa a máquina quando não o pode fazer, o veraneante que insiste em grelhar a bifana no carvão no meio do mato. É preciso, portanto, mais coragem e menos sonsice, dois instrumentos fundamentais na decisão pública e que não se compram com o dinheiro dos impostos.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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